Quando falamos em cinema nacional, Pixote – A lei do mais fraco é uma obra indispensável para analisar o Brasil à beira de um abismo. Para você ter uma ideia, o filme está prestes a completar quarenta anos, mas poderia ter sido feito nos dias de hoje!
Particularmente acredito que Pixote seja um dos filmes mais fortes que já assisti, até mais do que muito filme de terror feito por aí. Quando a gente para para assistir, nota que essa obra de 1981 tem uma abordagem diferencial em relação a outros filmes nacionais, e os envolvidos na produção fazem toda diferença. Esse tesouro do cinema brasileiro foi dirigido por Hector Babenco, que é mais conhecido por ter dirigido Carandiru, lançado em 2003. Ele é um cineasta argentino naturalizado no Brasil, produzindo uma das obras mais realistas já feitas por aqui, justamente por abordar esse lado mais “sombrio” de forma tão verossímil.
O filme narra a história do tal Pixote (Fernando Ramos da Silva), um garoto de 10 anos que inicia o filme sendo levado para a FEBEM, o antigo centro de detenção para menores infratores. Uma vez nesse lugar, o garoto percebe que está no inferno, pois logo na primeira noite ele testemunha um estupro. No dia seguinte, já presencia outras situações humilhantes provocadas por Sapatos brancos (Jardel Filho), o carcereiro do local, que bate nos menores e é negligente ao ponto de permitir que drogas circulem por lá.
Mesmo assim, Pixote acaba fazendo amizade com uns garotos que decidem fugir dali para tentar a sorte nas ruas de São Paulo e, posteriormente, do Rio de Janeiro. Eles acabam descobrindo que a vida lá fora reserva para eles um destino ainda pior: a inevitável entrada no mundo do crime. Pixote se envolve com traficantes, bandidos, cafetões e com a garota de programa Sueli (Marília Pera), e o destino de todos os envolvidos vai ser extremamente trágico.
O fato é que, em algum momento, realidade e ficção acabaram se misturando. Como assim, João?! Eu te explico! Hector Babenco bebeu muito da fonte do neorrealismo italiano, contratando jovens das periferias para o papel do elenco mirim. O melhor de tudo é que todo esse elenco manda muito bem, atuando de forma natural e fazendo com que a gente simpatize com eles e se solidarize. É verdade que o filme não romantiza muito a situação que Pixote e seus amigos vivem, uma vez que não há enrolação: eles cometem crimes hediondos, como roubar e, em alguns casos, matar!
Porém, o filme mostra que eles chegaram até o fundo do poço por conta da sua criação, sendo fruto de uma classe social extremamente baixa, crescendo com noções controversas de como se dar bem na vida, sendo abandonados à própria sorte em uma selva. A vida nas periferias não é nada fácil, e para as atuais 33 milhões (61% aproximadamente do número total) de crianças que pertencem a esse sistema (de acordo com dados da UNICEF), isso é ainda mais triste.
Esses dados que eu mencionei são de 2017, mas não quer dizer que seja nenhum anacronismo em relação aos anos 1980, pois a minha intenção é fazer um comparativo. Quando paramos para assistir ao filme, já testemunhamos essa realidade devastadora que está na nossa frente, e fazer essa leitura crítica é essencial, uma vez que percebemos que o Brasil, com um sistema frágil e corrupto, continua fazendo vítimas: mais de 9 mil crianças são vítimas de armas de fogo em nosso país, isso sem mencionar também as 2,5 milhões que vivem fora da escola. Se o filme causou o devido impacto na época do seu lançamento, fica a questão: por que essa situação não mudou? Aliás, mudou para pior! O link para conferir as fontes consultadas – dos dados estatísticos – está no final do texto.
Dizer que o Brasil viveu seus “dias de glória” durante esse período – no contexto da Ditadura Militar, que estava já nos seus últimos anos – significa negligenciar a realidade exposta por Pixote. Comentários que reforçam a ideia de que nessa época as coisas eram “melhores do que hoje” ignoram esses fatos, que foram só o pontapé para essa triste realidade.
O filme conquistou fama internacional e deu um upgrade na carreira de Fernando Ramos da Silva, que interpretava o protagonista, por intervenção de José Louzeiro, jornalista autor de Pixote: Infância dos Mortos, livro no qual o filme é baseado. Fernando participou do filme Elas não usam Black Tie, estrelado por Bete Mendes, entre outros trabalhos na TV, porém tinha dificuldade para decorar os textos, além de não saber como se portar em um grande estúdio, e acabou sendo deixado de lado pelos grandes diretores.
Com o dinheiro que ganhou por Pixote, Fernando construiu uma casa nova para sua família, em Diadema, no estado de São Paulo, e tinha certa popularidade na comunidade por conta de sua participação na obra de Hector Babenco, porém a realidade não era das melhores, uma vez que faltava oportunidades para ingressar na almejada carreira artística e também havia um péssimo exemplo dentro de casa: seu irmão mais velho tinha ligações com o mundo do crime. Já no fim da adolescência, Fernando se casou com Cida Venâncio, com quem teve uma filha. Porém, em 1987, pouco antes de completar 20 anos de idade, ele acabou entrando para o crime e, após realizar um assalto, foi perseguido pela polícia e assassinado com oito tiros, dentro de sua própria casa.
As autoridades envolvidas na execução de Fernando afirmaram na época que os tiros foram disparados em legítima defesa, uma vez que de acordo com eles o suspeito estava armado e havia atirado primeiro, o que a sua esposa Cida, que testemunhou a morte na época, desmentiu. Ela afirmou que Fernando estava desarmado enquanto se escondia da polícia. Os legistas que examinaram o corpo reforçaram a precisão dos tiros: aparentemente disparados diretamente no corpo do rapaz, além do fato de não haverem marcas de tiros no quarto em que Fernando foi executado.
Ainda no contexto da morte trágica de Fernando Ramos da Silva, o Fantástico realizou uma entrevista com alguns atores que conheciam o jovem, como Walmor Chagas (da adaptação para a TV de ‘O pagador de Promessas’), e a própria Marília Pera, esta inclusive dizendo que Fernando poderia “ter um belo futuro como ator, se ele tivesse se dedicado a isso”. A realidade da vida dele era realmente implacável, representando o dilema de muitas crianças e adolescentes que cresceram nas periferias, expostas ao crime organizado e à violência nas ruas, o que contrapõe a crença na ‘meritocracia’ de pessoas que desconhecem ou subestimam essa realidade.
Pixote – A lei do mais fraco é um filme que choca quem assiste, independente da idade – embora tenha classificação indicativa para maiores de 18 anos. No entanto, interpretar o filme e o impacto que ele teve na vida de Fernando não é uma questão de opinião, mas sim de maturidade e vivência, além de que é necessário ter consciência de classe. Para assistir, só é necessário estar aberto a esta experiência, e relevar o ritmo um pouco lento da obra, que tem mais de 2h de duração. Hoje, mais do que nunca, precisamos valorizar os nossos tesouros do cinema brasileiro e, mais do que isso, compreender sua importância não só para a indústria cinematográfica, quanto para a sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quer dar uma chance ao filme? Pois saiba que a obra está disponível no YouTube, até mesmo em versão restaurada. Depois, vale dar uma conferida também em Quem matou Pixote? (1996), filme de José Jofilly adaptado de “Pixote Nunca Mais”, livro escrito por Cida Venâncio após a morte do seu marido. Vale a pena dar uma lida em “Infância dos mortos”, de José Louzeiro, também!