Fala, meu povo! Alguns filmes marcaram para sempre a história do cinema, sendo considerados atualmente grandes clássicos. Porém, com o passar do tempo, não poderíamos deixar de notar que alguns refletem o que há de pior no preconceito, em alguns casos até mesmo para a época.
Tendo em vista a polêmica retirada de …E o vento levou (1939) de um canal de streaming e, posteriormente, o seu retorno em forma “definitiva”, resolvi escrever esse texto expressando unicamente meu ponto de vista enquanto cinéfilo e defensor da causa anti-racista. Essa é uma questão que não pode ser deixada de lado, e enquanto amantes do universo da sétima arte, precisamos debater o conteúdo dessas obras e o que ela reflete de forma negativa para a sociedade nos dias de hoje.
Para quem não conhece, Gone with the Wind é uma obra baseada no livro de mesmo nome escrito por Margaret Mitchell, lançado em 1936. O filme aborda a Guerra Civil Americana, que ocorreu nos EUA durante o início da década de 1850, em uma guerra entre o Norte e o Sul daquele país. O filme, por sua vez, se passa no Sul, narrando a jornada de Scarlett O’hara e seu relacionamento com Rhet Butler, que ocorre em uma série de eventos significativos para a sociedade da época. Esse é um resumo bem mastigado, uma vez que a obra tem aproximadamente 4h de duração.
Pois bem, o filme é uma representação desse período histórico extremamente importante para os EUA no século XIX, porém de um ponto de vista “tendencioso”, para dizer o mínimo. Acontece que logo após a Guerra de Secessão, veio a chamada “Era da Reconstrução”, que foi um período trágico para a população negra, ainda que já tenha se passado a escravidão oficialmente. A representação dos negros no filme, no entanto, até hoje gera discussões apontando o caráter racista da obra, que analisando por essa perspectiva, parece de fato “romancear” um período tão turbulento da história, e consequentemente ignorando certas questões fundamentais para compreendermos o quão problemática foi a Era da Reconstrução para a população afro-americana.
É importante apontar que Hattie McDaniel, atriz que interpretou a empregada doméstica Mammy no filme, levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por seu desempenho, sendo a primeira mulher negra a levar a estatueta para casa e também a primeira a comparecer na cerimônia como convidada, e não como funcionária do local. Entretanto, por trás dessa vitória puramente simbólica (e arrisco dizer que “comercial”), Hattie foi obrigada a aguardar pela nomeação de sua categoria longe dos demais membros do elenco do filme, sentada em uma outra mesa afastada, o que reflete a segregação racial.
As comparações com The Birth of a Nation (1915) – que utilizou blackfaces para representar os personagens negros, o que garante ele na posição de um dos filmes mais racistas da história – foram inevitáveis, ainda que a representação dos negros tenha sido diferente e, teoricamente, mais inclusiva. Na teoria por que, na década seguinte, anos 1940, tivemos Song of the South, lançado em 1946, para ser mais exato. Esse filme foi produzido pela Walt Disney e na época do seu lançamento, embora tenha tido um bom desempenho de bilheteria, não foi muito bem recebido por boa parte do público, que considerou a obra ofensiva e racista. A Hattie McDaniel também faz parte do elenco desse “filme”, que atualmente não possui versão restaurada desde meados dos anos 1980, uma vez que com o passar do tempo, foi ficando ainda mais evidente que Song of the South era um filme extremamente problemático.
Aqui no Brasil, o filme foi lançado em VHS como A canção do sul, e já foi exibido algumas vezes na TV aberta, fazendo com que uma galera aí (acima dos 30 anos) se lembre vagamente dele. Mas vamos para a história do filme, que se passa em uma fazenda de aristocratas brancos no século XIX onde trabalha o Uncle Remus (ou Tio Remus), um senhor que juntamente com outros trabalhadores negros, passam o dia no local cuidando dos afazeres da fazenda, ajudando uma criança – o neto da dona do lugar – a se adaptar à rotina por ali. Bem, o filme se passa na Era da Reconstrução, e a abordagem dos trabalhadores do filme, representados como pessoas que se conformam com a submissão acabou gerando uma série de críticas.
Não adianta dizer que na época as coisas eram assim e que esse texto é um anacronismo, uma vez que os filmes que citei aqui já receberam essas acusações de serem racistas na própria época do lançamento, e isso ficou evidente quando James Baskett, ator que interpretou Remus em Song of the South, foi impedido de ir para a estreia em Atlanta, mais uma vez o reflexo da segregação, juntamente com Hattie McDaniel.
E o que eu acho que devemos fazer com esse tipo de obra racista e que ignora uma série de fatores relevantes para a época em que são ambientadas? Na minha opinião, todas deveriam seguir o que foi feito com …E o vento levou, que retornou ao catálogo do canal de streaming de onde havia sido removido, mas com o acréscimo: uma especialista chamada Jacqueline Stewart, do Departamento de Cinema da Universidade de Chicago, participando de um vídeo introdutório explicando o legado problemático do filme e problematizando ele, mostrando o quão negligente a obra foi com a época que a própria retrata, no que se refere à escravidão.
Dessa forma, esse tipo de produção cinematográfica pode ser preservada para estudos acadêmicos e, no caso do longa de 1939, é disponibilizada para o grande público. Cruzar os braços diante dos problemas que o filme apresenta ou simplesmente fingir que ele não existiu e “cancelar tudo”, significa ignorar esse problema e, consequentemente, condena determinado filme com muita importância para a História para sempre.
Com a proposta da adição dos vídeos a Gone with the Wind, podemos contextualizar melhor esses filmes para as novas gerações e orientar sobre o preconceito que ele reflete. Democratizar o acesso a essas obras – sem cortes evidentemente – restauradas com esses vídeos didáticos, é fundamental para evitar comentários de pessoas que não observam nada de ofensivo nessas obras simplesmente por que “assistiu ao filme na infância” e, enquanto branco, acredita que todas as acusações que essas obras receberam na Era de Ouro de Hollywood é puro mimimi. Espero que esse textinho tenha deixado evidente o que eu acho desse tipo de comentário, que geralmente ignora certos preconceitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por George Floyd e por muitos outros que perdem a vida nas ruas dessa maneira cruel e que reflete o que há de mais feio na intolerância e no preconceito, precisamos levantar a bandeira anti racista e, junto a isso, promover debates sobre essas obras “clássicas” e problematizar a visão de mundo já ultrapassada que esse tipo de filme reflete. Sim, é fato que essas obras são ofensivas e realmente não são um bom exemplo de como contar uma história com tamanha importância, mas ainda há muito nelas que precisamos estudar e analisar, além de expor seus problemas para o público, fazendo com que erros assim nunca mais aconteçam na indústria cinematográfica. #BLACKLIVESMATTER
FONTES CONSULTADAS
- Gone With the Wind returns to HBO Max with disclaimer that film ‘denies the horrors of slavery’ – The Guardian.
Acesso em https://www.theguardian.com/film/2020/jun/25/gone-with-the-wind-returns-to-hbo-max-with-disclaimer-that-film-denies-the-horrors-of-slavery
- O filme que a Disney não quer que você veja – Canal EntrePlanos, apresentado pelo jornalista Max Valarezo.
Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=SMLtyk8NAxw
- …E o vento levou retorna a HBO Max com aviso de conteúdo – Omelete
Acesso em: https://www.omelete.com.br/filmes/e-o-vento-levou-hbo-max-nova-introducao
- Song of the South and Why You Will Never see it on Disney Plus – Shawn Rosell
Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=G4nQHXCCHqQ