Em 2016, um dos filmes mais comentados que chegou aos cinemas foi Festa da salsicha, uma animação em 3-D feita para o público adulto que recebeu críticas por ser tão “depravado”. Mas será que o tipo de humor que os realizadores escolheram justifica a crítica social que o filme faz?
Fala, meu povo! Há uma diversidade de comédias no universo do cinema, feitas para todos os gostos, baseando-se no tipo de humor de cada público. No caso do estadunidense Sausage Party, o artifício utilizado foi o humor absurdo, cujo termo deriva de Anthologie de l’Humor Noir, uma obra publicada em 1940 pelo escritor francês André Breton. Ele, além de militante do Partido Comunista Francês e um reconhecido poeta, foi um dos responsáveis por impulsionar o Surrealismo na Europa.
Esse tipo de comédia se destaca por flertar com o grotesco, realmente tocando em muita ferida por aí, em alguns casos até falando de doenças e da morte, por exemplo. O propósito era ironizar como a vida não fazia sentido, e esse elemento “no sense” se encaixa perfeitamente na obra de animação que iremos abordar aqui.
Ah! Vale lembrar que esse texto está recheado de spoilers, uma vez que para dissecar Festa da salsicha em sua essência humorística, preciso falar de trechos cruciais do filme. A trama começa em um supermercado, sendo narrada do ponto de vista dos produtos, que têm vida própria e acreditam que os humanos que os compram são deuses. A partir daí, uma confusão acontece e uma salsicha chamada Frank (voz original do Seth Rogen, e dublado em nosso idioma por Guilherme Briggs) acaba embarcando em uma jornada para descobrir a verdade, uma vez que o destino dele e de seus colegas não é o que eles esperam. Ele é acompanhado por outros alimentos, como a bisnaga Brenda, que é sua namorada, e tem em seu encalço o violento Chuca, uma ducha que está sedenta por vingança após ser vítima da mencionada confusão, indiretamente causada por Frank.
Festa da salsicha é amado e odiado com a mesma força pelo público, e existem diversos motivos para isso, mas vamos focar na forma como o filme utiliza o mecanismo do humor, que já tira logo a atenção de parte da galera: a parada aqui é totalmente absurda, pegando pesado com vários tabus sociais e chutando o balde diversas vezes, com piadas que falam de religião, doenças, mortes e sexo. Sendo assim, é comum que alguns não se identifiquem com esse tipo de comédia, uma vez que seu público-alvo é bem restrito: galera que gosta de bizarrice e é besta para rir, grupo no qual eu – (in)felizmente – me encaixo, uma vez que entrar nesse tipo de vibe serve como válvula de escape para mim, e somado às críticas sociais presentes, é prato cheio!
Ainda assim, isso não quer dizer que Sausage party tenha um humor “Politicamente incorreto” de forma gratuita, muito pelo contrário. Tudo que é abordado nesse filme tem um motivo para existir, dos personagens bizarros até as piadas disparadas por todos os lados, e o que é feito para ser propositadamente engraçado fica à gosto do freguês.
Nesse último aspecto, o que mais marcou a maioria do público foram as referências ao sexo e temas que o cercam, como a virgindade, a homossexualidade e até mesmo o culto à forma. Debater sobre sexo continua sendo um tabu na nossa sociedade, – o que já justificaria a adoção de aulas de educação sexual, mas enfim – e a forma como o filme lida com isso soa engraçada por que não costumamos ver muito disso em animações “peculiares” como esta, com personagens que por mais que sejam incomuns, têm características físicas bem próprias de animações da Pixar, por exemplo… quase uma paródia.
É fato que Festa da salsicha é um filme maduro, pois sacadas de humor como as piadas envolvendo sexo servem também para refletir que nós ainda caracterizamos isso como algo “depravado” e “sujo”, uma vez que a sociedade carece de esclarecimentos sobre o assunto que poderiam ajudar os mais jovens com a insegurança no que diz respeito não apenas a relações sexuais, como também a orientação sexual e prevenção contra doenças. Mas a cena final (a polêmica orgia dos alimentos) foi o que mais chocou o público, até mesmo quem gostou do filme. Essa sequência em especial merece um destaque não só pelo absurdo da cena – extremamente bizarra e explícita – mas também pela contextualização dela no filme.
Vamos lá! Esse é o clímax do filme, que resume bem a frase “se juntar direitinho, todo mundo transa”, e por mais que o marketing e as avaliações do filme destaquem essa cena em especial, – comparando ela com vídeos pornográficos – por trás da bizarrice envolvendo os alimentos, está a liberação de toda a “selvageria” que foi escondida por todos os personagens durante todo o filme. “Só a pontinha”, né?
É o caso da bisnaguinha Brenda, que acredita que os deuses a fizeram destinada a ser preenchida por uma salsicha, e por isso ela rejeita seus impulsos ao ser seduzida por Tereza del Taco. Acontece o mesmo com outros personagens, mas o caso da Brenda é o mais evidente. Seria essa cena uma bizarra cópia das orgias no palácio do Calígula? Ou isso representa uma certa alegoria à liberação dos nossos instintos após “sairmos da caverna”? A forma como esse humor vai descer pela sua garganta deve ilustrar a forma como você interpretou esse trecho em específico.
Platão deixa bem claro que o “Mito da caverna” se aplica em nossa sociedade, quando muitos se acomodam e preferem cruzar os braços e/ou fecham os olhos, optando por ignorar uma realidade além do alcance da sua vista. E a “quebra das correntes” feita pelo homem ilustra a jornada de Frank, principalmente quando ele descobre a terrível verdade – que todos eles serão consumidos – ele decide contar para todo mundo, que opta por não acreditar nele ao acharem seu comentário ofensivo para as crenças de cada um. Evidentemente que em algum momento eles iriam cair na real e se unirem para – literalmente – matar todo mundo. A reconstrução do Mito da Caverna é a espinha dorsal do roteiro de Festa da Salsicha.
Ainda existem outras referências nos nomes dos produtos, como por exemplo o suco – ou “juice“, cuja pronúncia rima com “jews” (judeus) – que é menosprezado pela maioria dos outros alimentos que estão no mesmo corredor, principalmente por um certo molho alemão que é claramente inspirado em Adolf Hitler. É bem delicado mexer com temas assim, mas no final do filme temos o molho sendo – literalmente, no sentido bíblico – comido por trás pelo suco, mostrando o que deveria ser o destino de todos os nazistas. E isso é só um detalhe, pois se pararmos para analisar todas as referências à História, Cultura e Religião que o filme faz, o texto teria que ser dividido em várias partes.
Sausage party é, então, uma comédia feita para um público com gosto bem “refinado”, no pior sentido. Ainda assim, não se trata de algo “mais pesado do que qualquer filme erótico”, mas sim de uma forma bizarra – e extremamente hilária, para alguns – que os realizadores encontraram para passar uma mensagem ao espectador. Mesmo assim, se você é uma pessoa que se impressiona com facilidade ou fica ofendido com piadas iconoclastas, melhor não arriscar espumar de raiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sendo assim, encerro esse texto dizendo que Festa da salsicha é uma comédia que eu adoro, não só pelos temas que já citei, como também pelos personagens, que são bem construídos e obedecendo ao requisito “overreacting” proposto pelo roteiro. A ducha que o diga! Um dos vilões mais bizarros, na minha opinião. Enfim, se quer assistir ao filme, está disponível no catálogo da Amazon Prime Video.