Friends foi e continua sendo um verdadeiro fenômeno; um dos programas sitcom mais lembrados, com seu humor único. Com o tempo, porém, ficou evidente que a série apresentou problemas, recebendo críticas por não ser tão inclusiva, entre outras coisas.
Aviso: Esse texto CONTÉM SPOILERS!
Fala, meu povo! Você já assistiu/conhece Friends? A série estreou em 1994 e continuou no ar até 2004, encerrando com chave de ouro dez temporadas que definitivamente marcaram para sempre a cultura pop, graças aos personagens, suas histórias e a forma como eles amadurecem ao longo da série. Basta olhar para qualquer produto que remete a Friends, e nos lembramos com muito carinho do período em que Rachel, Monica, Phoebe, Joey, Chandler e Ross viveram suas aventuras. Porém, outro fator que chama atenção é a forma como a série lida com temas tabus, o que expõe um certo “preconceito”, se analisarmos na perspectiva atual. Mas será que isso faz com que Friends seja uma série ruim?
Claro que não! A sitcom tem o seu potencial e o devido reconhecimento na cultura pop e no universo das séries de TV, conquistando um grande público na época de sua exibição e ainda permanecendo em alta nos canais de streaming, ganhando novos espectadores. Estamos falando de um seriado que estreou a mais de 25 anos, tornando evidente a presença de assuntos que na época não eram tratados com a mesma profundidade dos dias atuais.
Sim, é verdade que os anos 1990 tem sua importância no que diz respeito à pesquisas sobre temas sociais que são debatidos com maior ênfase hoje, mas determinados assuntos ainda eram tabus, como a relação entre casais do mesmo sexo. Vamos pegar um exemplo que já marcou a primeira temporada do seriado: o divórcio de Ross, que descobriu que sua esposa Carol era lésbica, após esta se apaixonar por Susan, que se tornou sua amante. Carol também engravidou de Ross, antes da separação, e apesar de querer que o pai participe da criação do filho, deseja criar a criança ao lado de Susan, a assumindo como esposa.
Quem assistiu a série deve saber que Ross tem um certo preconceito com esse relacionamento, pois ele não expressa a vergonha de quem foi traído – ou levou gaia, como dizemos por aqui – mas sim a vergonha de ter perdido a esposa para outra mulher, o que teria afetado a sua “masculinidade frágil”. Só isso já faz dele um embuste? Não tenha dúvida!
Sim, seria compreensível a frustração dele até certo ponto (por ter saído de um relacionamento), mas os comentários do personagem não ajudam muito a gente a ter pena dele nesse momento, muito pelo contrário, o colocam na categoria “embuste”, e com toda razão. Na temporada seguinte, temos o casamento de Carol e Susan – – e Ross resiste em colaborar com os preparativos para a cerimônia, até que acaba cedendo, o que deveria mostrar certo arrependimento da parte do personagem, que poderia reconhecer seus erros.
Isso, como você deve estar imaginando, não aconteceu exatamente dessa forma, pois embora as duas sejam felizes durante toda a série, e tendo criado a criança, batizando-o de Ben, o casal continuou sendo motivo de várias piadas feitas pelos personagens, sobretudo os rapazes, que possuem uma relação de cumplicidade. Tudo bem que o foco da maioria dessas piadas é zoar o Ross, uma vez que o personagem também é o “trapalhão” do grupo, mas isso não justifica atitudes do próprio, que também tem outras atitudes um tanto questionáveis. No entanto, é importante mencionar também que a cerimônia de Carol e Susan foi o primeiro casamento lésbico a ser exibido numa série de TV dos EUA, tendo esse episódio específico (se quiser conferir, é o S02E11) registrado uma alta audiência. O relacionamento entre as personagens, porém, teve suas limitações, uma vez que os criadores da série Marta Kauffman e David Crane, tiveram que adotar um visual mais “feminino” para o casal, que deveriam ter uma aparência “menos gay”, como eles falavam na época. É só a gente reparar que as mulheres que têm cabelos curtos são, em sua grande maioria, coadjuvantes.
Outro elemento que Friends aborda de forma superficial é o comportamento machista de Joey, durante as primeiras temporadas. No esboço inicial, ele havia sido descrito como um “completo idiota”, de acordo com Otávio Uga, do canal Super Oito, mas o personagem foi mudado após seu intérprete, Matt Le Blanc, questionar suas atitudes. Porém Joey manteve sua pose de “Don Juan” por um bom tempo, tratando as mulheres como objetos. Certos comentários como “Por isso que não fico com mulheres que leem” (parafraseando) reforçaram essa imagem negativa no Joey, que nas temporadas finais passou por mais mudanças, melhorando o seu personagem. O grupo, no entanto, funciona bem, uma vez que eles aprenderam a conviver uns com os outros, embora determinadas atitudes dos rapazes – e as vezes das meninas – foram repreendidas e rebatidas, fazendo com que a gente ache engraçado a vergonha que determinado personagem passou após uma atitude infantil. É o caso do episódio em que Ross fica cismado com o fato de Ben ter gostado de brincar com uma boneca Barbie, e o pai tenta diversas vezes persuadir a criança a largar o brinquedo e trocar por um mais “masculino”. Esse é o caso de atitudes que são repreendidas, pois Rachel e os demais personagens tiram sarro dele por conta da infantilidade, e o que a gente faz? Acha graça da babaquice de Ross, que abriu a boca e passou vergonha!
Nas últimas temporadas, tivemos inversões de papeis como o “babá-homem” contratado por Rachel para cuidar de sua filha, mas Ross (o pai, de novo), não gosta muito disso, e se sente incomodado. O personagem do “babá”, Sandy, é interpretado por Freddie Prinze Jr (de Eu sei o que vocês fizeram no verão passado), e no fim do episódio acaba sendo demitido por Ross, que apesar de aparentar reconhecer o talento do rapaz, não volta atrás e contrata uma mulher para tomar conta da criança, pois para ele isso estaria “dentro do padrão”. Entendeu o que tô querendo dizer? Essa situação certamente faria com que Ross aprendesse uma lição, o que não acontece, pois não readmite Sandy. Ross, assim não dá né, macho?! A nova babá é interpretada por Melissa George, que se revela homossexual, e mais uma vez temos uma caracterização mais “feminina”, mostrando que a restrição evidente nas primeiras temporadas continuava presente.
Charlie Wheeler é uma paleontóloga brilhante que entra na nona temporada, formando um triângulo amoroso com Ross e Joey. A personagem foi criada por conta de algumas críticas à serie por não incluir muitos personagens negros com importância para a narrativa. A grande maioria dos personagens negros que aparece na série está lá apenas como figurante ou como algum colega de trabalho de um deles, não sendo bem desenvolvidos. No caso de Charlie, ela participa de uma boa parte da temporada, tendo importância na vida de Ross. Acho que ela é uma das minhas coadjuvantes favoritas da série, depois da Janice!
Que o Chandler é um personagem extremamente engraçado, disso não temos dúvidas. Ele faz o tipo piadista, a maioria delas contadas na hora errada, o que garante as confusões. Chandler, apesar de ser o que mais zoa seus amigos e as atitudes deles diante de determinadas situações, também foi criticado pelos espectadores por algumas piadas controversas e também pela forma como se refere ao seu pai. Na infância, ele viu que seus pais se divorciaram devido ao caso extraconjugal do seu pai com o criado da família. Até aí a graça está na forma como Chandler se comporta quando o assunto é mencionado, usando o humor como mecanismo de defesa e para esconder suas inseguranças.
Porém, descobrimos na sétima temporada que seu pai é uma drag-queen, tendo um próprio show em Las Vegas. “…And that is daddy!”, diz o Chandler ao apresentá-lo para Monica, sua noiva. É evidente o desconforto do personagem diante do pai, porém Chan não desiste de convida-lo para seu casamento, mostrando que embora tenha sua opinião sobre as escolhas de seu pai, acha importante a presença deste na cerimônia, ilustrando a famosa frase “Ninguém é obrigado a concordar, mas sim a respeitar as escolhas”. Ainda tá longe da forma ideal de retratar esse tema, mas ao menos temos a série se redimindo, até certo ponto. Lembrando ainda que ele têm umas piadas gordofóbicas, né?!
Essa discussão é essencial para compreendermos a série e o motivo de, mesmo após tantos anos, ela permanecer na nossa memória, e seguirmos re-assistindo sempre que podemos (eu mesmo já o fiz três vezes). É necessário separar as coisas, uma vez que embora ainda tenhamos algumas controvérsias presentes em Friends, também temos um programa cuja proposta era acompanhar um grupo de amigos, suas aventuras e a forma como eles amadurecem com o tempo, mostrando que a amizade deles deixará uma marca eterna em cada um. E esse debate não deve fazer com que ninguém deixe de assistir à série, pois se fosse assim teríamos que nos livrar também de obras clássicas do cinema que também possuem seus demônios (… E o vento levou, por exemplo). Além disso, a espinha dorsal do humor de Friends aposta nas situações que os personagens enfrentam, e as confusões que são desencadeadas a partir daí. Por mais que a série tenha sua importância na cultura pop e seja extremamente divertida, não podemos deixar de debater sobre esses temas que nos anos 1990 eram tabus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda acha que eu estou de mimimi e que sou “fiscal do politicamente correto” (como gostam de dizer alguns preconceituosos)? Então, vou te falar uma coisa: Friends é a minha série favorita da vida, tendo uma importância significativa para mim, aparecendo no momento certo. Porém, mesmo sendo fã da sitcom, não poderia deixar de trazer essa discussão para vocês, pois é isso que nós devemos esclarecer no que diz respeito a produções realizadas algumas décadas atrás, ao invés de condená-la de imediato e fingir que nunca existiu. Precisamos debater esses assuntos, e lembrar que o mal uso deles na série serve como lição: sem esses trechos controversos, a série seria perfeita, pois não precisa deles. Quer dar uma chance? Então, maravilha! Todas as temporadas estão disponíveis na Netflix!