Os “novos” Les Misérables (2019) do diretor Ladj Ly é o tipo de filme que te dá um baita tapa na cara e ainda te faz dizer um obrigado agridoce. Tratando-se de um lembrete ambulante de que os clássicos nunca morrem – adaptam-se, mudam de rostos, datas, causas e localidades –, mostra que a miséria ainda prospera. Um fantasma inescapável.
Já na cena inicial de créditos, o filme demonstra exatamente qual é sua natureza. As ruas quentes parisienses do verão da Copa do Mundo pipocam um arsenal de bandeiras tricolores balançando no ar, inúmeras pessoas gritando, algumas em uníssono, outras em dissonância, uma porção fardada enquanto outras nem têm camisa, umas
em bares de guetos esquecidos pelo próprio governo, alguns em lugares históricos.
em bares de guetos esquecidos pelo próprio governo, alguns em lugares históricos.
O que importa é que todos estão juntos, torcendo pela França contra a Croácia, explodindo em êxtase e fogos com a vitória do memorável 4-2. E, logo
em seguida, aparece o título do filme. É uma deliciosa ironia que te vende logo de cara e não é à toa que o filme ganhou o prix Du jury no Festival de Cannes – a pegada inteligente é mantida em todo o filme até o final.
em seguida, aparece o título do filme. É uma deliciosa ironia que te vende logo de cara e não é à toa que o filme ganhou o prix Du jury no Festival de Cannes – a pegada inteligente é mantida em todo o filme até o final.
Contando com uma ótima direção, cinematografia e soberba atuação, Les Misérables (2019) é para qualquer um se chocar com a proposital ausência do romantismo clássico francês no roteiro, adotando-se, pois, um retrato cru da realidade fria e chocante do mundo criminal e policial da França, tendo como palco principal Montfermeil, um distrito do leste de Paris, mesmo local em que Victor Hugo perambulava escrevendo como contraste. Apesar das cenas iniciais começarem já deixando qualquer um na ponta do assento, perguntando-se o que está acontecendo, as cenas seguintes desaceleram bastante, dando mais do que tempo para respirar, montar o quebra-cabeça dramático e refletir.
Fonte da imagem: razaodeaspecto.com
Acompanhamos Stéphane Ruiz, “Seboso” [Pento, no original, interpretado por Bonnard], em sua nova divisão policial com Chris [Manenti] e Gwada [Zonga] que logo será mais criminosa que os próprios detentos. Acostumado com uma vida tranquila, familiar e honesta do interior, Ruiz se surpreende ao ver o estado degradado da cidade que não é mostrada aos turistas: os bairros inundados por violência doméstica e conflitos de gangues, o tráfico intenso de drogas que acontece por debaixo de mesas de bares, a prostituição, pobreza extrema em áreas de refugiados. Todos os personagens, porém, parecem muito bem acomodados com tal realidade, respondendo às indagações do “Seboso” com piadas e desconsiderações, arrastando-o junto para o poço da sujeira da corrupção, afirmando que ele deve seguir a “ordem” estabelecida. A crítica social não poderia ser mais evidente, mas é narrada com tamanha graciosidade que se torna difícil ver a abrupta mudança até o clímax.
Apesar do lento núcleo principal se mostrar bastante complexo em sua dinâmica de poder que vai para além
das normativas legislativas – passando da linha várias vezes, tendo atitudes abusivas e descaradamente ilegais –, os subnúcleos de personagens que vão aparecendo são mais simples de serem compreendidos em seus insights. Conhecemos Buzz [Al-Hassan Ly], um pré-adolescente que vive em um prédio esquecido pelo mundo, mas não pelo abuso policial; Issa [Issa Perica], um garoto de uma família disfuncional, tóxica e extremamente pobre, que vive
pelas ruas, tentando a sorte;O Prefeito [Steve Tientcheu], responsável por manter a “harmonia” dentro do bairro enquanto possui uma gangue própria e uma rede de comércios ilegais, sendo informante e amigo da polícia, e Salah [Almamy Kanouté], um jihadi que tem uma loja de kebab, adotando e protegendo aqueles em quem confia, sendo o medo não só da polícia como também das gangues locais.
das normativas legislativas – passando da linha várias vezes, tendo atitudes abusivas e descaradamente ilegais –, os subnúcleos de personagens que vão aparecendo são mais simples de serem compreendidos em seus insights. Conhecemos Buzz [Al-Hassan Ly], um pré-adolescente que vive em um prédio esquecido pelo mundo, mas não pelo abuso policial; Issa [Issa Perica], um garoto de uma família disfuncional, tóxica e extremamente pobre, que vive
pelas ruas, tentando a sorte;O Prefeito [Steve Tientcheu], responsável por manter a “harmonia” dentro do bairro enquanto possui uma gangue própria e uma rede de comércios ilegais, sendo informante e amigo da polícia, e Salah [Almamy Kanouté], um jihadi que tem uma loja de kebab, adotando e protegendo aqueles em quem confia, sendo o medo não só da polícia como também das gangues locais.
Fonte da imagem: IMDb
A gangue do Prefeito entra em conflito com outra, crianças acabam por se envolver e a polícia, que devia
proteger os indefesos e inocentes, acaba por perseguir descaradamente uma dessas crianças, quase a matando em nome da “manutenção da paz”. O caso inteiro é gravado e há mais uma perseguição que tenta silenciar a todos os envolvidos, mas que acaba dando ainda mais voz ao ocorrido. Molotovs são jogados. Montfermeil vê a repetição
de uma revolução. Como esses núcleos interagem entre si e como tudo acontece, entretanto, deixarei com você, sua criatividade e curiosidade.
proteger os indefesos e inocentes, acaba por perseguir descaradamente uma dessas crianças, quase a matando em nome da “manutenção da paz”. O caso inteiro é gravado e há mais uma perseguição que tenta silenciar a todos os envolvidos, mas que acaba dando ainda mais voz ao ocorrido. Molotovs são jogados. Montfermeil vê a repetição
de uma revolução. Como esses núcleos interagem entre si e como tudo acontece, entretanto, deixarei com você, sua criatividade e curiosidade.
Ouso dizer que o filme acaba tão repentinamente como começa. Sem sombras de dúvidas, as cenas iniciais e finais são minhas favoritas, mas por motivos totalmente diferentes. Enquanto a primeira é expositiva, clara e gritando por ironia, a última é de arrepiar os fios do cabelo, sendo dúbia ao mesmo tempo que é também crítica; não se trata de uma conclusão, é um convite. Para aqueles que pensam em ir assistir esperando a repetição exata, clássica e acrônica de um romance de 1800, não vão. Há claras referências ao romance original (um exemplo e dica: Ruiz é Jean Valjean), mas não é uma história copiada e colada. É, simplesmente, a história que se precisa do hoje.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O final do filme é você quem decide. Os miseráveis são nobres enquanto os nobres são miseráveis. Os miseráveis desgraçados, tanto de bolso e humanidade, representam a antiga geração, acostumada em seus hábitos grotescos de segregação, corrupção e comodismo – quem decide o final dessa história são as crianças, os nobres, o futuro. Se acaba em permanência ou mudança, cabe a quem está assistindo para definir.
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