Abrindo o mês de Setembro, e fechando o Pílulas do Orgulho, falamos de um dos mais importantes artistas da comunidade LGBTQIA+ de Hong Kong, Leslie Cheung – Paixão e entrega.
Amanda de Morais – Faço parte da Coordenadoria de Estudos da Ásia – CEASIA/UFPE;
Diretora do GT de Gênero e Sexualidade e curadora no subgrupo de gênero,
feminismos e movimentos LGBTQIA+ (Coreia do Sul).
Leslie Cheung – Paixão e entrega
Do cinema à música, artistas marcam seu espaço no estrelato com grandes performances e emocionantes obras, e não surpreendentemente servem de exemplo e inspiração para muitas pessoas ao redor do mundo. A representatividade entra logo em questão: Tratando-se especialmente de figuras que, mais do que fazerem arte, são as próprias representações artísticas de uma vida que não se deixa limitar por normatividades em suas mais diversas expressões, torna-se cada vez mais importante falar do que essas dissidências puderam e ainda podem ser no mundo. Nesse sentido, com intuito de apresentar uma das pessoas de maior importância para a comunidade LGBTQIA+ fora do eixo norte-americano-europeu, trataremos da vida e da carreira do artista honconguês Leslie Cheung (1956 – 2003)
Cinzas do passado
Leslie Cheung nasceu em 12 de setembro de 1959, em Kowloon, no território britânico de Hong Kong, como Cheung Fat-chung, o filho mais novo dos dez que Cheung Wut-hoi – um renomado alfaiate de celebridades ocidentais como Hitchcock e Marlon Brando – e Poon Yuk-yiu, que trabalhava como assistente administrativa e secretária de seu marido. Seu pai, Wut-hoi, apesar de ter alcançado sucesso na sua carreira de negócios de alfaiataria, não mostrava o mesmo desempenho para a criação de seus filhos e tampouco para a convivência com sua esposa, quem sofria regularmente de agressões físicas e de traições inúmeras de seu marido. Sua mãe, Yuk-yiu, ainda, talvez por ter sofrido uma infância de rejeição da própria família, talvez pelo péssimo relacionamento com seu marido, ou mesmo talvez por causa da falta de acalanto em sua própria personalidade, também se provou pouco melhor que seu esposo quando se tratava de demonstrar afeto a seus filhos. Ambos mãe e pai, no entanto, tinham algo em comum: viviam quase sempre longe de seus filhos, quem foram criados, majoritariamente, por empregados da família e pelos avós.
Por fazer parte de uma família de bom status social, seu pai e sua mãe o proibiam de brincar com outras crianças da vizinhança, por acharem que eram inferiores a sua família. Em razão disso também, Leslie cresceu como um garoto solitário; por ser oito anos mais novo que seu irmão mais próximo mantinha pouco contato com seus outros irmãos e irmãs. Ao longo de sua infância, Leslie fora criado, especialmente, por uma criada chamada Luk Che, quem o tratava como seu próprio filho, levando-o para parques e passeios, como para shows de ópera cantonesa de estrelas famosas como Pak Suet-sin e Yam Kim-fai. Esses felizes momentos de sua vida, no entanto, eram escassos, já que na maior parte do tempo ele era apenas um menino doce e solitário que encantava todos a sua volta, mas que sofria uma amarga e difícil primeira infância sem amigos.
A Segunda Guerra Mundial havia terminado onze anos antes de seu nascimento, deixando uma Hong Kong ainda em estável crescimento para recuperação e reconstrução da prosperidade no território, cuja população ainda vivia sob difíceis condições de pobreza e desamparo. Não havia nada no horizonte de Leslie, então, que fosse prever um futuro artístico e de riquezas para si mesmo, embora ele e sua família vivessem uma vida comparativamente privilegiada em Hong Kong, à época. Leslie não chegava a ser um mau aluno, tampouco um aluno especialmente diligente, algo que, considerando o sistema educacional altamente competitivo de Hong Kong, preocupou suas irmãs mais velhas, Ophelia e Serena, que ficaram determinadas a melhorar a performance de Leslie na escola, dando a ele aulas de reforço em casa. Essa pressão pelo desempenho escolar, no entanto, logo se transformou em um rancor que se manifestaria no futuro como uma aversão permanente à educação formal.
Apesar disso, o plano de suas irmãs garantiu bons resultados e Leslie, de fato, começou a se destacar em suas aulas na escola, onde ele, finalmente, conquistou oportunidades de fazer amigos pela primeira vez. Um deles foi Daffy Tong Hok-tak, filho de uma das amigas da mãe de Leslie. Em 1964, ainda, o pai de Leslie, mudou seu nome pessoal chinês para Kwok-wing, fato esse que não foi explicado posteriormente.
Dias selvagens
Com 12 anos, Leslie foi transferido para uma escola católica, Rosaryhill, onde se destacava em atividades extracurriculares, como badminton e festivais de música, momento em que Leslie primeiro manifestou seu interesse musical. Fora do ambiente escolar, Leslie começou a desenvolver um gosto pelo rock ocidental e pop, sendo suas bandas favoritas Creedence Clearwater Revival e Deep Purple. Além disso, foi um espectador bastante assíduo dos filmes chineses em mandarim que eram populares em Hong Kong e de filmes ocidentais, como a versão de 1968 de Romeu e Julieta.
Apesar da aversão à escola, o que fez o desempenho acadêmico de Leslie cair nos anos seguintes – assunto sensível e algo que tinha vergonha em admitir publicamente -, Leslie adquiriu gosto pelas aulas de inglês e de teatro, quando era frequentemente convidado a liderar peças da instituição. Apesar de ser visto por alguns colegas de escola como “rebelde”, parte de seus “problemas” da adolescência vieram quando passou a tomar consciência de sua orientação seual, a qual, depois da puberdade, percebeu ser diferente da maioria de seus colegas e familiares, inseridos num contexto de cultura conservadora chinesa ou de repressão religiosa do que seria considerado “sexualmente anormal”. Apesar de gostar de garotas, também eram os garotos que ocupavam sua mente. Anos depois, Leslie contou de um relacionamento que teve com um colega de sala com quem era bastante próximo. Após anos de fraco desempenho escolar, a família de Leslie decide mandá-lo ao Reino Unido, no condado de Norfolk na Inglaterra, para continuar seus estudos em uma escola pública. É assim que em 1973 Leslie vai à Inglaterra e sai de Hong Kong pela primeira vez em sua vida.
Na Inglaterra, ganhou mais liberdade e adquiriu mais independência longe de sua família, começou a trabalhar para o bar-restaurante de amigos de sua família, onde começou a cantar em público para seus clientes. À época era um fã de David Bowie e, em especial, de sua famosa fase como Ziggy Stardust. Seu gosto por filmes também cresceu enquanto assistia mais filmes ingleses, com destaque para o clássico “E o vento levou” que conquistou sua atenção pelo ator Leslie Howard, de quem adotaria o nome artístico anos depois, ao voltar para Hong Kong. A respeito disso, Leslie contava anos depois, que escolheu o nome “Leslie” porque gostava do filme, do ator e porque ficou intrigado pelo fato de que o nome era ambivalente e poderia ser adotado tanto por homens quanto por mulheres.
Leslie, no entanto, em razão de um incidente com um garoto com quem teve um affair no colégio – ao ser “descoberto” pela mãe de um garoto que havia confessado por carta seus sentimentos para Leslie -, saiu da escola e retornou a Hong Kong em 1974, mas não sem a repressão de seu pai e de seus superiores na escola, o que lhe causou bastante vergonha e humilhação. Em 1975 sua vida de volta em Hong Kong parecia depressivamente vazia, tinha quase 19 anos, sem boas qualificações acadêmicas, morando com seus pais, irmãos e irmãs, quem agora tinham consciência de sua orientação sexual.
Foi então que foi mandado para a Wellington College, onde fez novas amizades e novos pensamentos a respeito de seu “futuro musical” começaram a aparecer. Ele e seus amigos da faculdade criaram uma banda chamada Onyx, sendo Leslie seu cantor principal. Leslie começou a participar de shows de talento na TV, como também a tentar papéis para programas de televisão, mas ambos os caminhos sem sucesso. Apesar disso, ficou claro para ele que sua carreira estava no mundo da performance, no qual ele provaria para a sua família e para o mundo o seu sucesso. Sendo uma aposta, mais do que um plano, a fé de Leslie em suas próprias habilidades foi incontestável, só o que precisava, então, era uma oportunidade.
Felizes juntos
Para Leslie, essa oportunidade veio em 1977, quando o canal RTV anunciou uma competição regional de cantores amadores cujo prêmio para o ganhador de Hong Kong seria a assinatura de contrato com a emissora. Para a inscrição no programa e deslocamento até a emissora, Luk Che lhe deu a quantia de dinheiro necessária, a qual, apesar de irrisória à época, ainda não era algo que Leslie podia custear. Foi, assim, que Leslie, vestido em trajes “americanos”, entrou nos estúdios da RTV, e descrevendo a si mesmo como um modelo fashion, entrou no palco cheio de confiança e preparado como nunca antes cantou a canção “American Pie” de Don McLean deixando jurados e plateia impressionados com seu manejo impecável do inglês e com seu ritmo energético e contagiante.
Apresentação de Leslie Cheung com a canção American Pie,em 1977.
Apesar de sua apresentação promissora, Leslie ganhou segundo lugar da competição, mas não antes sem impressionar nomes que iriam alavancar sua carreira, como Michael Lai Siu-tin, músico e celebridade da TV, Florence Chan Suk-fun, empresária do ramo musical, cujo apoio a Leslie foi fundamental para a sua ascensão à fama. Sua apresentação foi também marcante o suficiente para impressionar o gerente da estação RTV, Steve Wong Sak-chiu, quem foi pessoalmente aos bastidores contar a Leslie que faria dele uma estrela. Sua colocação o levou para o próximo round, no qual viajaria para o Havaí para competir nas finais da emissora. Dessa vez, no entanto, seu resultado não chegou a ser brilhante, conquistando o quinto lugar, o que não ofuscou, contudo, as impressões que causou em sua terra natal. Retornando a Hong Kong, Steve Wong manteve sua promessa e conseguiu com que Leslie assinasse um contrato de três anos com a emissora, ao passo que também conseguiu assinar um contrato de três anos com a gravadora Polydor Hong Kong, iniciando, então, sua carreira no showbiz com grandes conquistas. Não surpreendentemente, o momento em que assinou seu contrato com as marcas foi também quando decidiu sair da casa de seus pais para onde nunca mais voltaria.
Com a cultura honconguesa no processo de afastamento de suas raízes do mandarim, a prosperidade crescente da colônia permitiu que o número de pessoas que pudesse arcar com os custos de um tempo de entretenimento, com uma televisão, por exemplo, cresceu como nunca antes. Assim, em meados de 1977, por volta de 80% dos lares de Hong Kong possuíam uma televisão, possibilitando com que estúdios e emissoras ganhassem espaço na produção e transmissão de programas, dramas e músicas locais e abrindo espaço para a criação de uma música popular cantonesa, hoje conhecida como o Cantopop, prevalecendo sobre as antigas músicas em mandarim.
Os primeiros papéis de Leslie foram pequenos, embora ainda notórios, como o hoje conhecido como o “soft porn” Erotic Dream of Red Chamber, de 1977, no qual o artista estrelou como o papel principal, interpretando Jia Bao Yu, um infantil, mimado e afeminado filho de família rica, papel esse que funcionaria como um veículo para explorar a juventude e a beleza de Leslie. Além de sua carreira na atuação, obedecendo os termos que a gravadora Polydor pôs para si, os dois primeiros álbuns de Leslie foram gravados apenas em inglês, com músicas de Billy Joel e Barry Manilow e seu terceiro álbum, Lover’s Arrow foi gravado em cantonês. Comercialmente, não obtiveram tanto sucesso, marcando seu início de carreira como uma época cheia de incertezas e obstáculos.
A compensação por seu início turbulento, no entanto, veio da televisão. Leslie atraiu a atenção do produtor e diretor Johnny Mak Don-hung, poderoso no departamento de dramas à época, que logo o colocou em um papel semi-autobiográfico na novela Crocodile Tears, interpretando um jovem cantor que passava por um período difícil em sua vida. Apesar da falta de treinamento para as telas, Leslie provou ser um talento natural e tornou a sua primeira novela um sucesso de audiência, iniciando, de fato, seu estrelato como ator.
Após Crocodile Tears, Leslie fez sua participação em uma série de novelas, nos mais variados papéis, entrando em contato com papéis que o fizeram entrar em contato com desafios como o aprendizado de artes marciais até mesmo atuações que demandavam de seu talento como cantor. Seu maior reconhecimento como cantor veio, então, em 1982, quando Leslie lançou seu primeiro hit, uma versão cover da canção The Wind Blows On, da cantora Momoe Yamaguchi, que revitalizou a imagem de Leslie como artista do Cantopop. Foi também nesse período que o artista ganhou seu maior reconhecimento como ator, estrelando o filme Nomad, papel que permitiu com que fosse nomeado para categoria de melhor ator no Hong Kong Film Awards de 1983.
Ganhando mais reconhecimento com sucessos musicais e de cinema, em filmes como Days of Being Wild, de 19, Farewell My Concubine, de 1993 e Happy Together do renomado diretor Kar-Wai Wong , de 1997, fizeram Leslie se abrir mais a respeito de sua vida pessoal. Em 1992, Cheung chegou a declarar publicamente em entrevista que sua “mente era bissexual” por que, segundo ele, era fácil para ele “amar uma mulher” tal como era “amar um homem”. Cantando a música The Moon Represents My Heart, o artista declarou, ainda, seus sentimentos no ano de 1997 dedicando-a aos “amores de sua vida”, sua mãe e seu parceiro Daffy Tong, amigo de infância. Com Daffy presente na audiência de seu show, Leslie apresentou seu parceiro ao público e declarou, enfim, estar em um relacionamento com outro homem, ato que demonstrou coragem, tendo em vista que a homossexualidade foi apenas descriminalizada em Hong Kong em 1991 e na China em 1997.
Tristemente, Leslie, ao mostrar sua entrega e sua paixão a sua carreira tanto quanto demonstrava ao parceiro, sofreu forte retaliação do público, algo que o fez passar por momentos difíceis e períodos depressivos, que desaguaram em seu triste fim. A partida de Leslie, em abril de 2003, no entanto, não significou um recuo para a expressão da individualidade daquelas que escapavam à “norma”. Leslie Cheung, mais que um artista, cantor ou ator, mostrou que sua representação poderia transcender e inspirar diversos outros espaços em que vidas queer também pudessem ocupar. O amor de Leslie pela arte, pela música e pelo cinema representa, ainda mais, uma possibilidade de que pessoas como ele também façam suas vozes serem ouvidas e brilharem no presente e no futuro.
Leslie Cheung dedica a música The Moon Represents My Heart ao seu parceiro Daffy Tong e à sua mãe.