Em celebração ao mês do orgulho LGBTIA+, o NerdSpeaking preparou uma série de publicações – Pílulas do Orgulho – sobre personalidades representativas das dissidências de gênero e sexualidade inseridas no contexto asiático – e, mais especificamente, leste-asiático – que se tornaram emblemáticas para a história e cultura de seus países! Para abrir essa série de textos, trataremos da vida e da carreira da primeira artista sul-coreana assumidamente trans, Harisu! Não Leia a Bula.
Pílulas do Orgulho, essa série de textos neste mês do orgulho LGBTQIA+, tem como intuito apresentar figuras de importância para a comunidade LGBTQIA+ fora do eixo norte-americano-europeu foram organizados pequenos textos introdutórios, sem pretensão de esgotar as contribuições de cada uma dessas figuras em seus respectivos contextos. Para abrir essa série de textos, trataremos da vida e da carreira da primeira artista sul-coreana assumidamente trans, Harisu (1975 – ).
- Transgredindo normas: Crescimento e estreia.
Harisu, nome artístico de Lee Kyung-eun e uma adaptação para o alfabeto coreano da expressão inglesa Hot Issue, nasceu em 17 fevereiro de 1975 na cidade de Seongnam, onde foi criada por sua mãe, trabalhadora doméstica, e seu pai, funcionário público, junto a mais quatro irmãos. Durante sua infância e adolescência, pela influência dos valores patriarcais e confucionistas que permeavam a sociedade coreana, a qual se via inserida em um contexto ditatorial militar de mais de vinte anos de duração, Lee Kyung-eun foi criada sob as rígidas e violentas regras de seu pai, que rejeitava comportamentos e performances de feminilidade vindos de seus filhos. De acordo com o programa de televisão da KBS, Love on the Air (TV는 사랑을 싣고), em uma transmissão de maio de 2020, Harisu conta que sua infância foi repleta de dificuldades familiares, especialmente em razão dos desentendimentos com seu pai, quem não reconhecia sua identidade de gênero e quem a submetia a uma rígida e violenta disciplina para criá-la como um “filho forte”. Apesar disso, Harisu, em entrevista com o jornal Chosun, em 2001, afirmou que desde sua infância, sempre se identificou como uma garota que adorava brincar de bonecas.
Apesar de performar uma feminilidade que pareceria estranha, ou até mesmo bizarra, aos olhos de uma sociedade que ainda vivia uma transição democrática e o desgarramento de suas forças militaristas, a feminilidade que Harisu transmitia tornou-se um de seus mais fortes pilares que influenciaram seu destaque na cena do entretenimento sul-coreano. Em 1991, ainda no ensino médio, antes mesmo de sua transição de gênero, Lee Kyung-eun fez sua estreia no cenário pop sul-coreano, através da atuação, ganhando um pequeno papel em um drama da emissora MBC, estreia esas que lhe abriu mais oportunidades em papéis secundários nos dramas e programas de emissora da época. É o caso, por exemplo, do drama Lendas Urbanas – Canção dos Mortos (도시괴담-죽은 자의 노래) e do programa Teatro Humano (인간극장), transmitidos no ano de 2001.
Foi também durante sua época de ensino médio que Harisu confessa ter experienciado seu primeiro amor, relacionamento esse cujo rompimento, segundo a própria Harisu, em entrevista com o jornal My Daily realizada em 2012, influenciou grandemente na decisão por se submeter à cirurgia de redesignação de sexo. Decidida, então, a passar por esse processo de transição, após sua formatura no ensino médio, começou a receber terapia hormonal e mudou-se, por meio do visto de celebridade, para cidade de Himeji, no Japão, onde se sustentava fazendo performances de dança coreana, até que seu palco, do ano de 1995 a 1998, se mudou para a cidade de Tóquio. Durante esse tempo, após completar 20 anos, se submeteu à cirurgia de redesignação de sexo, realizada por Kim Seok-kwon, um dos primeiros médicos sul-coreanos a realizar esse tipo de cirurgia na Coreia do Sul e no mundo. Após sua cirurgia, Harisu foi dispensada efetivamente do serviço militar compulsório, com a justificativa de “insanidade mental grau 5”, motivo este que depois foi acobertado pela cirurgia realizada. A partir do ano de 1998, Harisu começou seus trabalhos como modelo publicitária em Seul, caminhos esses que a levaram a conhecer um recrutador de modelos no ano 2000, quem a convidou para assinar um contrato com a empresa sul-coreana de entretenimento, TTM Entertainment, que seria um dos motores propulsores de seu sucesso na Coreia do Sul.
2. Transitando a tentação e desafio: a alavancagem da carreira.
Antes mesmo de grupos de K-pop como Blackpink, BTS e cantores emblemáticos como Psy, com sua famosa música Gangnam Style, conquistarem os ouvidos e os corações de um vasto público internacional, os holofotes da música e do entretenimento sul-coreanos no início do século 21 voltavam-se para uma mulher, em carreira solo, de longos cabelos castanhos e baixa estatura: Harisu.
Em março de 2001, Harisu, em sua carreira de modelo publicitária para a TTM Entertainment, chamou atenção do CEO da empresa Dodo Cosmetics, Lim Yong-seong, que persuadiu seus diretores executivos para ofertar uma oportunidade ser exibida em um comercial de TV, sob a condição de revelar seu maior “segredo”: o de ser uma mulher trans, fato que manteve escondido da maioria do público durante seus primeiros anos de carreira.
“Sair do armário” nunca foi uma tarefa fácil para pessoas que fazem parte da comunidade LGBTIA+. Para Harisu, no entanto, as portas desse armário não passaram de meras coxias de teatro. Ao aceitar a proposta, Harisu concordou em ser a modelo representante de um pó facial, que transformaria a forma como seria vista pelo público sul-coreano, mais ainda do que transformaria a sua aparência. A Dodo Cosmetics, com a intenção de se salvar de uma falência que ameaçava corporações sul-coreanas à época, optou por conquistar o mercado interno e atrair a atenção de novas consumidoras através da consolidação de um padrão estético de beleza coreana pelo endosso de celebridades coreanas, o que, afinal, também reforçava uma ideia de soberania coreana.
Pensando nisso, o CEO da Dodo Cosmetics, Lim Yong-song, observou em Harisu uma beleza “provocativa” e em sua identidade como mulher trans um potencial de alavancar sua marca. Harisu, por outro lado, em entrevista em 2009 com a Korea Times, chega a afirmar que não se “reconhece como transgênero” mas que “não queria perder a chance de estrear como modelo”. Anos mais tarde, revelou outra razão para tomar a decisão que mudaria sua vida: não “sair do armário” havia paralisado sua carreira. Dizer sim para o processo de objetificação que passaria para ter seu rosto estampado em um comercial de TV – espalhando, inclusive, a palavra “liar”, ou “mentirosa”, por todo seu corpo – pareceu apenas mais um dos sacrifícios que teria de fazer em prol de sua carreira.Mas como esse segredo seria contado? Qual seria o conceito dessa grande revelação? A empresa de marketing, Daehong Communications, então propôs: por que não dar a Harisu, por meio de computação gráfica, um pomo de Adão? Já que, apesar de ter nascido com atributos de um corpo masculino, Harisu não possuía um pomo de Adão proeminente.
Foi então que, sentada em uma sala escurecida, Harisu erguia sua cabeça em frente a uma câmera que gravava sua maior estreia, gravação essa modificada por CGI para, em uma tentativa de “re-masculinização”, revelar a identidade de Harisu, algo que transcendia o masculino e o feminino. As palavras que aparecem em vermelho pela tela com os dizeres “red liar”, que, na cultura coreana, se referem às mentiras flagrantes, permitem um jogo de ideias: o produto cosmético permite que Harisu “minta” sobre seu gênero e, ao mesmo tempo, com que seja nada além de si mesma.
O coming out de Harisu surpreendeu e confundiu o público e já sua beleza excepcional a recepcionou e a aproximou de um mundo de fama no qual dissidências da norma pouco seriam aceitas. Harisu, então, inaugurou um imaginário queer antes não exibido nas molduras midiáticas de gênero. No processo de reconhecimento de Harisu como pessoa pública, o esperado ostracismo foi posto em xeque pela glorificação da artista. Para o público, Harisu representava a transcendência de um lugar-comum do humano: ainda mais bonita, mais sexy e mais glamourosa do que se podia ser.
3. Transformações constantes: para além de Harisu.
A estreia de Harisu indústria do K-pop se deu com o lançamento do seu primeiro álbum “Temptation” em 2001 e logo desaguou na sua participação mais ativa na indústria cinematográfica, como seu papel no filme Yellow Hair 2 (노랑머리 2), de 2001. Harisu também buscou divulgar, através de sua própria voz, a sua autobiografia, intitulada “O Adão que se tornou Eva” (이브가 된 아담). Desde sua estreia comercial há mais de duas décadas, a carreira de Harisu continuou a se expandir pelos ramos da música, pela atuação, pela modelagem, mas também pela advocacia e defesa em prol da comunidade LGBTIA+.
Em 2022, discussões a respeito da edição de uma lei anti-discriminação – o que envolve a penalidade e a prevenção da violência contra minorias de gênero e raciais, por exemplo – baseada em um projeto de lei proposto em 2020 pelo Justice Party sul-coreano dividiu opiniões dos representantes da Assembleia Nacional sul-coreana. Em resposta, pôde-se observar um forte receio da adoção de pautas pró-igualdade voltadas ao público LGBTIA+ e um crescimento de grupos conservadores e religiosos se posicionando contra uma postura de proteção institucional à comunidade. Engajada politicamente, Harisu, como celebridade que assume um papel representante da comunidade, chegou a comparecer a uma conferência emergencial de imprensa na Assembleia Nacional demandando a edição de uma lei anti-discriminação na Coreia do Sul.
Caso que ganhou bastante repercussão no país foi do sargento Byun Hee-soo, homem trans de pouco mais de 20 anos, que se alistou no exército como homem, mas foi classificado como “deficiente” e dispensado do serviço militar mesmo após realizar sua cirurgia de redesignação sexual – isto é, mesmo após adequar-se aos padrões biológicos que se tem de um “corpo masculino”. Antes de sua dispensa, Hee-soo declarou em conferência de imprensa que gostaria de mostrar a todos que “também pode ser um dos grandes soldados que protegem o país”. Um ano após sua dispensa, foi encontrada sem vida em sua casa, o que chocou a comunidade LGBTIA+ do país, que estava em luto pelo falecimento de outras duas pessoas transgênero, Kim Ki-hong e Lee Eun-yong, com meros dias de diferença.
A normatividade de gênero dentro do K-pop passou a ser uma pauta mais amplamente discutida, bem como os padrões de gênero passaram por transformações dentro da estética pop sul-coreana antes não vislumbrados no meio do entretenimento. No entanto, ao contrário do que se pensa, essas transformações não se traduzem em uma aceitação maior da comunidade LGBTIA+ pela sociedade sul-coreana, ainda marcada por profundas raízes patriarcais, militaristas e conservadoras. Fatores esses que refletem, inclusive, na eleição do presidente Yoon Suk-yeol, representante política de direita conservadora do país e quem já fez declarações associando a homossexualidade a uma “doença mental”.
Diante desse cenário, Harisu, para além de um ícone pop, representa um potencial de mudança política para a comunidade LGBTIA+ sul-coreana. A conformidade estética de padrões de uma performance de feminilidade e de masculinidade ainda não são amplamente questionados com discursos mais “radicais” , também em razão da força que o mercado de beleza sul-coreana e da normatividade da aparência ressoam nos indivíduos. Ainda assim, ter um ícone como Harisu lado a lado de girl groups de sucesso na Coreia, e em constante atividade como representante de marcas e empresas – inclusive a própria – seja um sinal de que o desejo de uma sociedade mais diversa e aberta à comunidade LGBTIA+ signifique, sim, um ponto de partida transformador.
REFERÊNCIAS