O amor também mora nas palavras não ditas. Mais do que isso, ele resiste na nossa memória, pelo nosso tato e olfato, pela nossa audição e visão. Por meio dessa impressão sinestésica, o livro “Por Favor, Cuide da Mamãe”, de Shin Kyung-sook, publicado em 2008, transparece e também, por vezes, torna opacos os meios que vivenciamos nossos afetos e nossos medos ao longo de nossas vidas.
A vida é às vezes incrivelmente frágil, mas algumas vidas
são assustadoramente fortes.
Shin Kyung-sook, Por Favor, Cuide da Mamãe
A narrativa de “Por favor, cuide da mamãe” cresce em torno de opostos que orientam as ações de qualquer ser humano – satisfação e decepção, alegria e tristeza. Eis que nos deparamos com a primeira e, talvez, eterna contradição: a pretensão de sermos únicos e universais. Esse desejo se manifesta na obra e nos toca especialmente porque compartilhamos uma origem comum, assimilada de maneiras radicalmente diversas, isto é, o fato de termos uma mãe.
A história inicia-se com o baque inicial, que é digerido ao longo da obra: Park So-nyo, mulher, mãe e idosa, desapareceu na estação do metrô de Seul e, sozinha, vagueia sem rumo aparente por lugares da capital sul coreana que mesmo o leitor desconhece. A procura por Park So-nyo é impulsionada por sua família, a qual, gradativamente, ganha contornos mais definidos por meio dos olhares de seus próprios integrantes. Externadas em segunda pessoa, as impressões familiares mostram-se, desde logo, peças-chave para compreensão da própria Park So-nyo, majoritariamente referida apenas como “Mamãe”, enquanto figura que sincretiza não apenas sua família, mas cada indivíduo específico que ela compõe ou que, ao menos, por ela é acolhida. O processo de descoberta da Mamãe – durante o qual, ironicamente, ela se mostra ausente – é um desabrochar agonístico pelo reconhecimento da personagem na constituição de cada narrador.
A primeira percepção da Mamãe é feita pelas lentes de sua filha mais velha, Chi-hon, escritora, solteira, de pouco mais de trinta anos. A trajetória que a escritora constrói na procura de sua mãe se reflete no aprendizado, isto é, no ato de aprender, de fato, quem é e o que significa a Mamãe. Não por acaso, como a maioria dos aprendizados pelos quais as pessoas extraem significado para a vida, essa experiência é carregada por erros e tentativas, e pode ser traduzida pela relação que So-nyo e Chi-hon guardam com a troca constante de ensinar e aprender. Na medida que Chi-hon compartilha e recapitula seus momentos com sua mãe, mais parece dar-se conta do que não sabe sobre ela. Como escritora, depara-se com a frustração de não saber descrevê-la. É, então, que curiosamente parece assumir a perspectiva de leitora da própria mãe: encontra o conforto e o desconsolo de assimilar as emoções que sua mãe expressava, ou que deixava de expressar.
Indo mais além, o desaparecimento de Park So-nyo provoca a autoconsciência de Chi-hon enquanto leitora silenciosa de sua mãe: reagia a suas ações como um espelho de suas emoções. Agia com zelo em momentos de dor, buscava ser companhia em momentos de solidão, desejava responsabilidade em momentos de teimosia e, despercebidamente, bem remarca como lhe é repetido “Você e sua mãe foram feitas da mesma forma!”. A filha mais velha, na primeira face da procura que nos é contada, consegue empreender uma delicada exibição do potencial transformador dos silêncios de sua mãe, já que, num olhar mais atencioso de suas ações, eles procuravam também o reconhecimento da sinceridade e da lealdade guardadas em seus olhos.
Por meio da perspectiva da filha escritora, a busca por Mamãe também encara expectativas postas sobre aqueles que receberam os seus cuidados: o que aqueles que deveriam protegê-la faziam enquanto Park So-nyo perdia seu rumo? O arrependimento pela falta de zelo desabrocha as faces de um carinho pela sua mãe antes intocado pela mais velha. A importância que Mamãe carrega para seus filhos, marido e demais parentes revela-se no pouco que ela se deixa extrair de sua memória: a culpa perante o filho mais velho, o abandono intermitente do marido, a felicidade na nutrição de seus filhos e a carga de dependência de suas relações que reverberam em suas crônicas enxaquecas. Chi-hon põe em destaque a lembrança do velho clichê: amor também rima com dor.
Felizmente, o afeto que Shin Kyung-sook delineia na obra também transborda as fronteiras desse maniqueísmo. Apesar de ser a filha mais velha a primeira que se apresenta, o primeiro que nos é mais precisamente esculpido é seu filho mais velho, Hyong-chol. A segunda linha narrativa é realizada pelo primeiro filho de Park So-nyo, agraciado com o título de ‘preferido da Mamãe’, não surpreendentemente, sendo o primeiro a ter o nome revelado. Uma vez mostrada a face afetuosa que o arrependimento pode assumir, o que se dispõe por meio de Hyong-chol é como o orgulho e a satisfação de Mamãe conseguem também assumir certo peso na trajetória familiar.
Sendo o primeiro que inaugura o papel de Park So-nyo enquanto Mamãe, seu filho mais velho provoca também as primeiras alegrias que a dedicação materna pode oferecer, de forma que são espontaneamente expressos os traços de satisfação de Park So-nyo em ocupar o lugar de Mamãe na vida de Hyong-chol. Então um emocionante monólogo discorrido pela mãe é recordado pelo filho mais velho, quando, em momento de acalento – ou mesmo autoacalento – Mamãe percebe sua existência como maior que si mesma, quando casou, quando sentiu as fagulhas da maternidade, quando pôde assimilar a responsabilidade dos laços que havia criado.
Os laços formados entre o mais velho e a mãe adquirem a forma de ação-reação a tal ponto de tensionamento que, para a Mamãe, transformam parte de sua maternidade em culpa. Os breves pedidos de desculpa que So-nyo faz para seu filho – quase desconexos com o diálogo que os antecede, visto que marcam uma culpa permanente da Mamãe – ganham paralelismo com o acompanhamento de rituais tradicionais como da Lua Cheia da Colheita, quando ela vislumbra o sucesso e a boa sorte da família e, especialmente, de seu filho pelo empenho e disciplina que emprega para o êxito das vidas que a rodeiam. A primeira impressão materna de So-nyo nos remarca como a felicidade pode incorporar simplicidade tamanha quando construída em reciprocidade com o outro. Pode-se ver similar sentimento invadindo o filho mais velho, quando sentado em seu quarto, em momento de desconcentração do estudo, ouve a Mamãe e os irmãos rirem, e a reação àqueles que o protegem e defendem é clara: Hyong-chol também sorri.
Apesar de ser uma via de mão dupla, esse afeto parece tomar outros caminhos para o terceiro narrador da Mamãe, a qual agora assume linhas um pouco mais definidas como esposa. O marido de Park So-nyo protagoniza mais uma face da descoberta da Mamãe e guia-se por trilhas inversas àquelas que vagou enquanto ainda a tinha por perto. Enquanto seus filhos resgatam o que lhes foi incorporado da Mamãe, descobrindo também partes de si mesmos, o Papai, ao passo que perde a sua esposa, também afasta-se de si mesmo e arranca de sua vida percepções acerca do afeto e do cuidado que não parecia assimilar no jeito de se portar com aqueles que, ao menos, guardava um senso de responsabilidade.
Dolorosa é a visão caleidoscópica que monta de sua esposa, a tal ponto que não se duvida que ela também tenha, para o marido, exercido papel de Mamãe. Caleidoscópica também porque, pela sua visão, chegava apenas a captar fragmentos da Mamãe refletidos pelos seus filhos e filhas, de forma que a inteireza de sua humanidade não lhe foi palpável em termos concretos. A perda que sofre torna-se ainda mais profunda quando percebe não ter sido alvo do seu olhar sincero e dócil tão mencionado durante as narrativas que são tecidas. Pelo contrário, o que atrai o marido para Park So-nyo é o pesar que captura no semblante da futura esposa, ainda quando adolescente, relação que se desenvolve como uma troca clemente e quase não recíproca de dedicação.
Embora o longo tempo de casamento pudesse retrucar as diferentes formas de afeto que Papai compartilhou com a Mamãe, ele não a acompanhou, mesmo em termos literais, durante essa trajetória. A constante nos passos dados pelo Papai eram os passos lentos de Mamãe que o seguiam. Pode-se entender que a perda da Mamãe deu-se de forma gradual para o seu marido, pelo apagamento progressivo das pegadas que o acompanhavam, e o que lhe resta é o cuidado mediado pelos laços familiares que lhe sobraram. O distanciamento, antes indesejado por Park So-nyo, passa a ser esperado até mesmo para os últimos momentos de sua vida, e ser deixada para trás lhe dá a visão do que seu marido deixou de enxergar quando se permitiu apenas a olhar para frente em sua jornada autocentrada. Park So-nyo vivencia a partida de parentes, o esquecimento de sua condição de mãe e de esposa, mas também percebe que, pelos seus próprios passos, também se pode construir um caminho pelo qual vale a pena andar.
É, então, que a narração confia o adeus à própria Mamãe. O tensionamento atinge um nível mais próximo do leitor pelo recurso narrativo em segunda pessoa, criando a atmosfera conversacional entre passado e presente que uma visita a um antigo álbum de fotos de família pode proporcionar. A remissão ao passado envolve uma capacidade de suposição do presente, de onde Mamãe pretende se desvencilhar, por não poder mais controlá-lo, nem administrá-lo.
A apreciação da maternidade por Park So-nyo também escapa de sua corporeidade quando passa a encará-la em sua filha mais nova, que vai assumindo formas da Mamãe que poderia ter sido, e pelas quais nutre grande apreço. A filha mais nova reconhece a face de Mamãe que foi ocultada – mas nunca esquecida – pela própria So-nyo, isto é, a Park So-nyo amiga. Os silêncios ganham menos peso e são aceitos com a leveza do reconhecimento do diferente. Uma conversa lacônica entre a mãe e filha passa a ter teor atrativo para a visão da humanidade de Mamãe, para a recepção de Park So-nyo em termos de paridade com sua família.
O enfrentamento de adversidades enseja a introspecção da Mamãe, o que não a impede de florescer em cada ser que alimenta e cuida. O delicado desenho de um lar cresce durante a narrativa, pelos odores, sabores e texturas que são fabricados, nutridos por Mamãe e suscitados ao longo da obra, e que são conduzidos pelas terras e pessoas todas que a acompanham. Mais uma vez a potência universalizante da Mamãe nos salta aos olhos e, gradativamente, tornando-se una com a natureza, provoca forte senso de compaixão e nostalgia pela simples – e não simplista -descrição do ambiente no qual cresceu e aprendeu a ser Mamãe. As gotas de chuva, a carícia do vento, o sussurro das folhas, a companhia de animais e a briga entre estações que se instalam se tornam manifestações do mundo nascido dentro da Mamãe, algo que a torna tão única, mas também tão universalmente arrebatadora para quem a lê e participa de sua catarse.
Em máxima imersão, o tom de despedida com que se depara o leitor é consagrado pela filha mais velha, Chi-hon. O paradeiro da Mamãe, a este ponto, transborda qualquer significado concreto, desde que se admite o que há muito se sentia: dentro e fora de si, Park So-nyo está em todos os lugares. Inalcançável, talvez, Mamãe sempre fora. Não por seus passos lentos, por seus silêncios, por sua culpa insanável, – traços de vulnerabilidade esses que a tornavam humana -, mas por, mesmo assim, exalar apenas bondade, rara e sincera, pela qual se urgia da mais velha o pedido de compaixão, de piedade, de gentileza, para que a Mamãe, ou, a esse ponto, para que a nossa Mamãe fosse cuidada.