Produção cinematográfica lançada oficialmente em 2019, o nordestino Bacurau repercutiu em festivais internacionais e agora está elegível para o Oscar 2021! Nesse texto, pretendo defender meu ponto de vista justificando o quão necessário é o filme de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
ATENÇÃO: Este texto contém spoilers de “Bacurau”. Além disso, também há muitos gatilhos. Sinto o cheiro de polêmica no ar! Então, continue por sua conta e risco.
Bacurau é, acima de tudo, um filme político-social, e pode ser interpretado de maneiras diferentes de acordo com o espectador. Infelizmente, um grupo significativo de espectadores ainda tem um equivocado preconceito com produções nacionais, evitando consequentemente obras primas do cinema brasileiro. Uma estratégia dos envolvidos na produção e distribuição desses filmes é inscrever este em festivais especializados mundo afora, para que a obra possa ser aclamada e chegar ao Brasil com avaliações quentes da crítica internacional.
Aparentemente, essas referências internacionais são “selos de qualidade” para atrair o brasileiro ao cinema e convencê-lo a conferir um produto nacional. A ironia do processo fica evidente quando a gente assiste a “Bacurau” e percebe a mensagem poderosa que os diretores passam para o espectador, que contradiz a chamada “estratégia mercadológica” dos produtores de filmes brasileiros. Mas, autocríticas a parte, o filme é muito mais do que aparenta.
A trama não apresenta um protagonista específico, mas foca diretamente no fictício povoado que dá título ao filme, localizado no sertão de Pernambuco e que é esquecido pelo governo municipal. A morte de uma moradora antiga e o retorno de sua neta ao local – depois de passar um tempo no exterior – são eventos que começam a mover a história, que a partir daí vai tomando um rumo estranho, e logo os habitantes de Bacurau se vêem em uma luta pela sobrevivência – literalmente. Embora a sinopse não entregue muita coisa – o que é perfeito para se surpreender com o filme – ela já amplia o leque, deixando evidente que o filme mistura vários gêneros, tais como drama, comédia regional, faroeste e até mesmo terror.
Independente do impacto que Bacurau causou no circuito comercial, isso não impediu que ele fosse recebido com aplausos e vaias na mesma medida. Embora o filme seja feito claramente para dividir o público, a forma como ele foi concebido já trás um conteúdo enriquecedor para debater em sala de aula, por exemplo. O cinema de Kléber Mendonça Filho já tem o potencial crítico como marca registrada, já que o cineasta não tem medo de disparar farpas à política nacional e mexer em vespeiros, “tocando na ferida” de aspectos sociais e fazendo com que o público seja obrigado a acordar, aceitando uma realidade que era ignorada, mesmo estando diante de seus olhos. A espinha dorsal do roteiro de Bacurau é a mesma que suporta a História do Brasil, utilizando um cenário de futuro supostamente inevitável como uma possibilidade de “epílogo” para a situação em que o país se encontra desde sempre.
Esse aspecto do cenário que dialoga com a História do Brasil fortalece as interpretações de espectadores que falavam sobre uma “releitura de Canudos”, mudando o final da história e também utilizando como referência a herança do cangaço e – de acordo com o rumo que a trama toma – fazendo uma supostaba exaltação à justiça com as próprias mãos. É nesse último aspecto que alguns críticos focaram, alegando que o filme seria contraditório enquanto uma obra política, já que traz um discurso poderoso de resistência e “orgulho nordestino” nas entrelinhas, mas que aparentemente levou o seu texto “ao pé da letra” e se excedeu em sua última cena. Sim, estou falando do momento em que as cabeças são arrancadas!
Essa recepção um tanto negativa de Bacurau só reforça os argumentos de que o Brasil está diante de uma das obras únicas do cinema, do tipo que o público achava que nunca mais veria desde o lançamento de Cidade de Deus, em 2002. Ou seja, o fato de termos avaliações mistas dessa produção faz com que a admiração por ela seja ainda maior. E está tudo bem!
Uma realidade é evidente: Bacurau não foi feito para ser recebido em consenso pelos críticos, mas para promover uma discussão de forma proposital, gerando a reflexão de que estamos “à beira do abismo” e que chegará a hora de “pôr a mão na massa” e encarar a guerra conforme esta sempre foi ditada e, assim, levando o discurso de uma resistência ao pé da letra. Portanto, a recepção mista do filme por parte da crítica e do grande público apenas deixa claro que a realidade retratada em Bacurau é inevitável, já que vivemos nela.
Cinematograficamente falando, o filme certamente foi feito com grandes intenções e, de uma forma ou outra, cumpre esse objetivo com maestria. Analisando sua estrutura, é possível notar referências às obras de Glauber Rocha, especialmente “Barravento”, o primeiro longa-metragem de sua carreira. A montagem do filme de Kléber e Juliano faz referência até mesmo a “Star Wars”, sobretudo na sua primeira metade, criando um paralelo com as cenas ambientadas no planeta Tatooine, por exemplo.
Já a reviravolta, envolvendo a presença de mercenários estadunidenses sedentos por sangue – literalmente – pode soar como artificial demais para alguns espectadores, mas a proposta de criar uma obra de resistência exige personagens caricatos, ainda que sejam claras as alfinetadas a brasileiros que não reconhecem o Nordeste como parte da nação. Também sobram alfinetadas a política de atrair “turistas” para as chamadas “belezas exóticas” do Brasil, fazendo referência a campanhas de marketing de órgãos públicos, por exemplo, atraindo um público internacional com a promessa de que o local irá suprir as suas necessidades. Isso fica evidente quando analisamos a trama do prefeito Tony Júnior, por exemplo, candidato a reeleição e que atraiu os estrangeiros para Bacurau.
O desfecho do longa-metragem é a prova de que, mais uma vez, o Nordeste no fim das contas salvou o Brasil do abismo. Isso foi feito a custo de “tanta violência”, alguns espectadores podem dizer, mas infelizmente não houve tempo para elaborar uma estratégia e, em determinadas circunstâncias, o planejamento de defesa é em curto prazo. Ou será que muitos brasileiros resistiram à Ditadura Militar apenas com flores?!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isso é suficiente para afirmar que o filme é bom? Em minha opinião, essa discussão amplia o nosso raio de alcance e faz com que enxerguemos essa produção além de um mero “bom filme” lançado nos cinemas nos últimos anos. Seguindo o parâmetro utilizado pela maioria das críticas cinematográficas, classifico-o como uma obra prima que merece ser vista por todo brasileiro uma vez na vida. Mas confesso que na primeira vez que o assisti, fiquei uns dias digerindo a obra, e só após assistir novamente me dei conta da sua importância. Se isso não é o suficiente para afirmar que o filme é excepcional, então não sei o que é preciso para deixar isso mais evidente.