O medo é uma das expressões mais básicas do ser humano, ele é usado para manipular politicamente, é poderoso para nos motivar e, no cinema, ele pode desvelar elementos dos imaginários sociais de uma sociedade. O que será que filmes Black horror como “Get out” revelam?
E aí pessoal, aqui quem fala é o Lucas Daniel! Eu geralmente tô aqui falando de séries, filmes e outras coisitas mais. Vocês já devem estar carecas de saber o quanto o Nerdspeaking ama terror e falar sobre racismo, a gente inclusive tem um episódio do podcast do Nerdspeaking, o Nerdeteria, só pra falar disso. O João Ferreira vive falando de filme nacional de terror, American Horror Story e muito mais. Hoje não é diferente, eu vou abordar o chamado Black horror e o que ele revela das nossas relações de poder e na luta contra o racismo.
Afinal, o que pode ser caracterizado como Black horror no cinema norte americano e brasileiro, afinal, o que esses filmes têm em comum? Resolvi trazer um análise do fenômeno e de algumas narrativas, além de tentar deixar claro qual o contexto para o florescimento desses filmes de ficção.
PSICANÁLISE E O CINEMA
A psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da Silva, em entrevista à Revista cult, disse que há uma propaganda sistemática e uma reedição das propostas racistas na sociedade [a qual na minha perspectiva os meios de comunicação de massa como o cinema estão incluídos]. Além da escola, há a polícia, que atua sobre a população negra caracterizando-os, principalmente os homens, como bandidos.
Assim como qualquer outra obra de arte e/ou produção, os filmes são discursos que revelam traços de sua autora ou autor bem como um dado recorte espacial, temporal, social e econômico. É um discurso que é compreendido diferentemente por cada indivíduo e cada cultura. Por exemplo, os criadores de King Kong (1933) tinham a intenção de construir uma história de aventura e romance onde a atriz Ann, que ao chegar em uma ilha misteriosa, é salva de um sacrifício pelo Kong, mas muitas pessoas em um contexto de discussões decoloniais (ou descoloniais) ressignificam, ou melhor, re-analisam o discurso do filme partindo dessa discussão intelectual de crítica ao imperialismo, etnocentrismo e eurocentrismo para compreender o medo inconsciente do poder, da revolta, da força do negro (visto o da revolta dos Haitianos para sua libertação em 1791-1804) e identificar a simbologia de um filme imerso em um dado imaginário social racista e eugenista.
Em seu artigo Imagens da África nos quadrinhos e no cinema de início dos anos 1930: Tintim e King Kong, Lúcio Reis Filho propõe revisitar o imperialismo em seu contexto histórico e a partilha da África no fim do século XIX por meio de uma análise da produção cultural da década de 1930 com as obras Tintim no Congo (1931) e o já citado King Kong (1933). Esse artigo massa traz uma análise mais aprofundada sobre essas questões.
Sendo assim, partindo dessas críticas, defendo que o gênero terror (ou Horror no inglês) opera em diversos níveis e ele não pode ser descolado das circunstâncias de criação: o mais interessante nisso tudo é que a produção e discursos de uma sociedade racista revela por meio da linguagem cinematográfica o inconsciente, já que, para o psicanalista Lacan, o inconsciente se estrutura como linguagem. A possível revolta e revolução das pessoas negras no Estados Unidos em meio a tensão racial dos anos 30 e um entendimento do monstro Kong como “outro primitivo”, que é basilar para compreender a ideia de supremacia branca onde os indivíduos negros são os outros incivilizados e distantes.
O MEDO É UM COMPONENTE MUITO INTERESSANTE
Na grande parte da história do cinema, os atores negros apareceram em filmes de terror em papéis coadjuvantes. Muitos eram profundamente racistas. No livro Horror Noire: Negros nos filmes de terror americanos da década de 1890 até o presente (2011), a Dra. Robin R. Coleman descreve alguns desses aspectos: a coletânea que indica o racismo estrutural manifestado nos discursos desses filmes eram muitas, uma vez que pessoas negras eram alvos de violências horríveis (Por exemplo, em A Nigger in the Woodpile, de 1904, a casa de um casal negro é bombardeada e o casal cambaleia, carbonizado), blackface (ato de atores brancos pintarem seus rostos de preto e construírem caricaturas estigmatizantes para a população negra) entre inúmeras outras.
O medo é um componente muito interessante como um dispositivo de discussão das relações sociais. Desde os primeiros filmes do chamado zumbi moderno, Romero traz em Noite dos Mortos Vivos um protagonista negro e uma crítica a sociedade dos EUA. Os filmes de Jordan Peele devem ser encarados como uma homenagem a “Noite dos Mortos-Vivos” e “Ganja & Hess”, mas devem ser também apreciados como uma ferramenta de criação de contra narrativas às histórias que naturalizam os estigmas e estereótipos a população negra em países com passado escravocrata como os EUA e o Brasil.
Peele tem mostrado e reforçado a flexibilidade que o gênero Horror sempre demonstrou em Get out e US, a capacidade de poder examinar e contrapor as realidades das pessoas negras a partir de comentários no nível da política, classe e raça por meio da linguagem cinematográfica que já foi utilizada e moldada por notórios filmes racistas como O nascimento de uma nação (1915), de D. W. Griffith. No Brasil, o recente As Boas Maneiras (2017) também traz um comentário interessante sobre as relações de poder e trabalho a partir do horror. Sobre essa produção nacional, confere a indicação exclusiva que a gente já vez sobre ele: https://bit.ly/3fLPPKZ
O gênero Terror está amadurecendo a partir das dificuldades e demandas das populações mais marginalizadas e na periferia do mundo, ele vem se tornando mais imaginativo e inclusivo por meio dos novos (porém poucos nomes) como Peele, Ava DuVernay, Dee Rees etc. Os filmes desses e dessas cineastas joga luz no mal-estar que experimentamos nas tensões raciais de países que se estruturam por meio do racismo e esse mal-estar acontece quando o imaginário construído por essas narrativas se choca com o real.
A CRÍTICA SOCIAL F*** E PEELE
Get out (2017) divulgação: Blumhouse Productions
O já citado artigo Imagens da África nos quadrinhos e no cinema de início dos anos 1930, que traz a crítica ao imaginário eurocêntrico e etnocêntrico, fundamentado nas teorias racistas e no mito da superioridade do homem branco, indica o caminho para entedermos os filmes do Jordan. Eu lembro que eu estava no Twitter e respondi um comentário de um afrodescendente norte americano que dizia que [spoiler] “a vilã do filme era a primeira personagem de Lupita Nyong’o”. Ao qual eu respondi: “o vilão do filme são os Estados Unidos”.
Logo, uma amiga próxima me questionou com interrogações. Esse história é muito ilustrativa das barreiras que um discurso atravessa para chegar da mente de sua ou seu realizador na audiência. Peele constrói um mundo dual onde cidadãos subterrâneos de roupa vermelha tentam matam os de cima e dão as mãos: seria uma revolução das pessoas negras e dos sub cidadãos explorados pelo sistema? Seria esse um conto do medo dessa revolta?
Peele quebra a dualidade desse mundo dando um twist na nossa percepção da protagonista. O US do filme significa, para mim, é claro, o “NÓS” que compõem uma narrativa cristalizada nos imaginários sociais dos norte americanos, mas também a própria identidade da nação “US”, United States, o qual se liga diretamente com a primeira percepção dita.
O gênero Terror nos coloca em situações de estranhamento, que tem dentro de si um elemento de subversão da realidade. Por meio do estreitamento dos limites entre a realidade e o imaginário, pessoas como Peele provocam sensações associadas ao medo e, como diria Freud, estão associadas com termo “angústia” (angst). Essa é a mágica da ficção e do terror no cinema e em várias outras mídias. Eles revelam os indivíduos que o produzem, os problemas sociais e suas sociedades.