Em celebração ao mês do orgulho LGBTIA+, o Pílulas do Orgulho, série de textos aqui do NerdSpeaking preparou mais um texto para falar de uma personalidade importante para a escrita, no leste asiático; hoje trataremos da vida e da carreira de um dos mais conhecidos escritores japoneses Yukio Mishima – Tempo em catarse.
Da neve à maturidade: o passado de Mishima.
Yukio Mishima, nome artístico de Kimitake Hiraoka, nasceu em 1925 na capital do Japão, Tóquio, em Shinjuku. Durante os primeiros anos de sua infância foi criado pela avó paterna, Natsuko Hiraoka, que, por ser ligada à Era Tokugawa (1603-1868) – também conhecida como Período Edo, ou Xogunato Tokugawa, entendida como o período em que uma ditadura militar “feudal” foi estabelecida no Japão – mantinha um modo de vida bastante aristocrático e rigoroso junto a seu neto. Mishima à época foi posto sob condição de isolamento e de reclusão por sua vó, quem também se mostrava propensa a comportamentos violentos e a afastar Yukio de outros garotos de sua idade, para que passasse seu tempo com suas primas e aproveitasse tarefas vistas como mais tradicionalmente “femininas” junto a sua avó. Mishima era, então, proibido de sair à luz do sol, participar de quaisquer esportes e de brincar com outros garotos. Em relação à influência de Natsuko nos primeiros anos da vida de Yukio, alguns biógrafos pontuam as alusões violentas em seus escritos e relacionam, ainda, as explosões violentas de sua avó ao fascínio que Mishima desenvolveu ao longo dos anos pela temática da morte. Foi, então, que, com doze anos de idade, a redoma de vidro sob a qual tinha sido colocado apresentou suas primeiras rachaduras.
Apesar de Mishima ter se habituado e ter sido permitido de realizar e aproveitar tarefas mais “femininas” junto a sua avó, aos doze anos, Mishima passou a viver sob o mesmo teto dos pais, Azusa Hiraoka, um oficial no Ministério da Agricultura e Comércio, e Shizue Hiraoka, a filha do 5o diretor da Academia Kaisei – considerada uma das escolas para homens mais prestigiadas do Japão. Seu pai fazia-o experimentar dos métodos educativos da disciplina militar, tal como segurar Mishima na lateral de um trem em alta velocidade, ou ter seus pertences vasculhados em busca de exterminar qualquer interesse em uma literatura mais “afeminada”, rasgando, inclusive, vários de seus manuscritos no processo. Foi assim que, embora proibido de escrever suas histórias, Mishima continuou a escrever em segredo, apoiado e protegido por sua mãe.
Aos 13 anos, sua avó, Natsuko, levou-o, então, para sua primeira peça de teatro Noh, a forma teatral mais antiga performada no japão, e de teatro Kabuki, uma forma clássica de teatro japonês que une a performance dramática à dança tradicional japonesa em uma apresentação repleta de decorações e fantasias glamourosas. Foi assim, em suas primeiras experiências que Mishima tornou-se fascinado por teatro Noh e teatro Kabuki e por formas de arte dramática.
Ao longo dos anos, no colégio, Mishima desenvolveu ainda mais seu gosto por literatura, explorando obras de autores como Oscar Wilde e Friedrich Nietzsche, estudando alemão, e integrando o corpo editorial da sociedade literária, Hojinkai-zasshi, de sua escola como membro mais novo. Dentro da literatura japonesa, Mishima foi atraído pelos trabalhos de Shizuo Ito, do poeta e novelista Haryo Sato e do poeta Michizo Tachihara. Suas contribuições como membro da sociedade literária incluíram trabalhos de poesia como haiku e waka – tipos de poesia tradicional japonesa – antes mesmo de sua atenção ser voltada para trabalhos de prosa. Em 1941, com 16 anos, foi convidado pela Hojinkai-zasshi a escrever uma pequena história, oportunidade em que submeteu “Floresta em pleno florescer”, ou Hanazakari no Mori, conto em que o narrador descreve o sentimento de que seus ancestrais, de alguma forma, ainda vivem dentro de si, por meio de metáforas e aforismas que se tornaram ao longo do tempo a marca registrada do escritor.
Mishima, buscando críticas construtivas, enviou também uma cópia de sua história para seu professor de japonês, Fumio Shimizu, a quem impressionou com a habilidade de seu aluno e enviou seus escritos para o corpo editorial de uma revista literária de prestígio, Bungei Bunka, da qual era também membro. Os membros da revista ficam também impressionados e decidem pela publicação da história na revista, conto esse que depois foi publicado como um livro de edição limitada em 1944. No entanto, para que fosse protegido de uma potencial retaliação de seu pai, Azusa, seu professor e os outros membros do corpo editorial da revista escolheram, então, seu nome artístico, o pseudônimo de Yukio Mishima. “Mishima” viria do nome da estação de “MIshima”, cidade japonesa por onde passaram no caminho de uma reunião editorial. “Yukio”, por sua vez, viria de yuki, palavra japonesa para “neve”, em razão de os membros da revista terem visto neve no topo do Monte Fuji no trajeto de trem que percorriam. Na sede da revista, Hasuda Zenmei, membro da revista, elogiou a genialidade de Mishima: “Esse jovem autor é uma criança enviada dos céus da eterna história japonesa. Ele é muito mais novo que nós, mas entrou em cena já bastante maduro”.
O tradicional homem moderno: Mishima no presente.
Em 1943, Hasuda, quem se tornou quase um mentor para Mishima, ao ser chamado para serviço militar como primeiro-tenente do teatro do Sudeste Asiático, ganhou uma festa de despedida pelos membros da Bungei Bunka, momento em que ofereceu as palavras de despedida para Mishima: Eu confio o futuro do Japão a você. Durante seus 20 anos, Mishima publicou histórias como “O cigarro”, em 1944, que descreve um amor que sentiu por outro homem durante seus tempos de escola e momentos que serviu de chacota para membros do clube de rúgbi de sua escola apenas por fazer parte de uma sociedade literária. Escreveu também “O menino que escrevia poesia”, história baseada em seus tempos de escola na Gakushūin Junior High School, onde se graduou como primeiro da turma, atuando como representante da graduação em cerimônia de formatura, na qual o próprio imperador Hirohito estava presente, e de quem recebeu posteriormente um relógio de prata no Ministério da Casa Imperial.
Em 1944, durante os anos finais da Segunda Guerra Mundial, Mishima foi convocado para participar do Exército Imperial Japonês e mal passou no exame, com uma classificação menos desejável de conscrito de “segunda classe”. Ocorre que Mishima, no dia do exame médico de sua convocação, teve um resfriado e foi diagnosticado pelo jovem médico do exército erroneamente com Tuberculose, tendo-o declarado como inapto para o serviço. Estudiosos afirmam que o fracasso em receber uma classificação menor que “primeira classe” em seu exame de recrutamento, em conjunto com a doença e a declaração de inaptidão para o serviço contribuiu para que se desenvolvesse um complexo de inferioridade sobre sua constituição frágil, o que, mais tarde, levou à sua obsessão por condicionamento físico e musculação.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, seu pai deu “meia-permissão” para que se tornasse um novelista, tendo em vista seu receio em que este se tornasse o rumo profissional do seu filho, afinal esperava que Mishima virasse um burocrata como ele mesmo e o avô de Mishima foram. Assim, Azusa aconselhou seu filho a ingressar na Faculdade de Direito na Universidade de Tóquio, onde Mishima se graduou em 1947 e obteve uma posição no Ministério da Fazenda japonês. No entanto, após apenas um ano exercendo seu cargo, Mishima chegou a tal ponto de exaustão que fez seu pai permitir a resignação de sua carreira como burocrata e dedicar-se, finalmente, à escrita.
A temática do amor entre homens, seja pela retratação do shudō – retratação de atos homossexuais dentro de uma dinâmica jovem-mais velho prevalente na sociedade japonesa do período Tokugawa -, seja pela expressão do nanshoku – traduzido em sentido literal como “cores masculinas” para se referir ao amor entre dois homens – começou, então, a tornar-se temática explorada em meio a suas narrativas. Histórias como “A idade média” e “Ladrões” foram alguns de seus trabalhos iniciais que já demonstraram o interesse do autor pela temática do amor entre homens e da morte. Foi, então, em 1949, que Mishima publicou “Confissões de uma máscara”, um relato semi-autobiográfico de um homem homossexual que se esconde por trás de uma máscara para se encaixar na sociedade. O romance foi extremamente bem sucedido e fez de Mishima uma celebridade com apenas 24 anos.
Sua obra é permeada por paradoxos: beleza e morte, oriente e ocidente, amor e rejeição. Entre essas dicotomias, gritavam para o olhar de Mishima os valores tradicionais japoneses em contraste com os valores do homem contemporâneo. Destaca-se na apreciação de valores tradicionais de Mishima no período pós-Guerra, sua interpretação da obra literária Hagakure, a qual contém os mais altos preceitos da ética samurai e onde se encontra definida a noção de “bushido”, ou “caminho dos guerreiros”, isto é, um conjunto de leis que regiam o comportamento dos guerreiros, fundamentadas na fidelidade devida de um vassalo ao seu senhor, em troca de um feudo ou proteção. Por meio dela, Mishima realiza um paralelo entre a crítica do autor da obra à “pulverização” dos íntegros valores do samurai e um Japão pós-guerra que jazia em paz, ao qual Mishima depositava uma permanente censura, tendo em vista que mostrava ser uma realidade a qual não conseguia se ajustar.
O caminho da literatura: o futuro em Mishima.
Para Mishima, o Japão perpassava por um esvaziamento no sentido dado à vida, emocional e espiritualmente: não poderia mais voltar a se armar, e não poderia haver um propósito para a morte. Para o escritor, a vida contínua passava a adquirir um sentido monótono, tal e qual a humanidade. O propósito da morte, especialmente considerando aqueles que morreram em guerra pelo seu país, levava o autor a pensar a literatura como contribuição para a compreensão dos sofrimentos, dos sonhos e das angústias dos indivíduos. As obras literárias teriam, assim, a capacidade de absorver e indagar a essência do ser humano. O suicídio, por essa linha do pensamento do autor, se não atinge a nós diretamente, ao menos nos diz respeito, tal como nos diz respeito a valorização da morte, assim como da vida.
Em 1966,Mishima acreditava que o seu objetivo de vida era adquirir todos os vários atributos de um guerreiros, procurando misturar o caminho da literatura e o caminho da espada. Expressando o modo de ser do samurai ele procurava “manter a morte em mente dia após dia, pra manter em foco a cada momento a morte inevitável”, a morte que lhe escapou quando foi dispensado do exército, e que agora ressurgia nos seus sonhos sobre as suas capacidades como guerreiro. Nessa época, o escritor escreveu obras como “Cavalos em fuga” e “Patriotismo”, que tratavam de temas bélicos em constante flerte com a violência e a morte, experiências essas que retratava como aquilo que tornam tradicionalistas os “verdadeiros heróis neste mundo”. Em razão da força de seus valores tradicionalistas, Mishima defendia o sistema imperial japonês e criticava o caminhar em direção ao aprofundamento das relações capitalistas de industrialização, as quais, segundo ele, perturbavam as relações entre os indivíduos. Chegou, inclusive, a criar sua própria milícia, não armada e anti-comunista, chamada “Tatenokai”, ou “Sociedade do Escudo”, que seria uma permissão do exército para que Mishima usasse seus campos de treinamento e recrutasse seguidores estudantes dos setores direitistas das universidades.
Yukio Mishima – Tempo em catarse
À época, Mishima sentiu que sua vocação como escritor estava preenchida, recebeu prêmios literários por suas obras “O som das ondas”, “O templo do pavilhão dourado”, tinha sucesso nas vendas de seus romances “Neve de primavera” e “Cavalos em fuga”. Recebeu, ainda, indicações para o Nobel de Literatura, prêmio que perdeu pra Kawabata, seu único defensor à época. A produção literária de Mishima serviu-lhe como manual de seu próprio plano militar pessoal de ataque à era moderna, determinando sua missão de trazer hierarquia ao Oriente e ao pacífico, como a nação que havia preservado a perspectiva tradicionalista pela tentativa de um golpe de Estado. Foi então que, em 25 de novembro de 1970, Mishima e quatro outros membros do Tatenokai se uniram a ele para fazer de refém o General MIshita e permitir que se dirigisse aos soldados estacionas na base em Tóquio, para, assim, cometer harakiri, em consonância com a tradição samurai. Mishima dirigiu-se à sacada do escritório do general, proferiu seu discurso em prol da restauração do país, convocando uma rebelião. Proferiu, assim, suas últimas palavras “Saúdo o Imperador. Vida longa ao Imperador”.